Tecnologias Eficazes na Pós-Colheita: Qualidade Máxima, Desperdício Mínimo
Ilana Urbano Bron¹*, Eliane Aparecida Benato¹, Gláucia Moraes Dias¹, Juliana Sanches de Laurentiz¹, Maria Fernanda Demonte Penteado Moretzsohn de Castro¹, Patrícia Cia1¹ e Silvia Regina de Toledo Valentini¹
1 Centro de P&D de Ecofisiologia e Biofísica
A bioeconomia, economia sustentável que surge como resultado de inovações na área das ciências biológicas, está relacionada ao desenvolvimento e uso de produtos e processos biológicos nas áreas da biotecnologia industrial, da saúde humana e da produtividade agrícola e pecuária. A bioeconomia permite à sociedade dispor de opções tecnológicas com menor impacto ambiental, transformar processos industriais, bem como aumentar a produtividade agrícola. Está estreitamente ligada à busca por novas tecnologias que priorizem a qualidade de vida da sociedade e do meio ambiente. Seguindo essa vertente, entende-se que uso de tecnologia de ponta com cultivares de alta qualidade genética e sistemas de produção de alta eficiência são essenciais para a bioeconomia, porém podem ser falhos se não houver alinhamento na cadeia de hortícolas visando a redução de perdas e a preservação da qualidade dos alimentos.
O segmento pós-colheita de hortícolas merece atenção especial e ações estratégicas por apresentar elevados índices de perdas devido à perecibilidade intrínseca dos produtos. A cadeia de produção de produtos hortícolas frescos, que inclui frutas, hortaliças e plantas ornamentais, é caracterizada por uma série de entraves que culminam em perda da qualidade e alto desperdício, principalmente relacionados à falta de cadeia do frio, à ocorrência de danos mecânicos, distúrbios fisiológicos e deterioração microbiana agravada, ainda, em alguns casos, por veicular patógenos que podem causar doenças ao consumidor ou pragas quarentenárias. As perdas de produtos derivados da produção de hortifruti no Brasil variam entre 35 e 40%, o que seria suficiente para alimentar muitos milhões de pessoas. Uma política para redução de perdas compreende pelo menos três dimensões integradas: produção, abastecimento e comercialização e consumidor final.
Podemos começar pela produção de hortícolas, que se mostra bastante fragmentada com milhares de produtores em diferentes regiões produtoras e não suficientemente organizados em um associativismo eficaz. Ainda sobre a produção, vale mencionar que não existe na cadeia um elo organizador. No caso de produtos industrializados, a indústria estabelece os padrões da matéria-prima, o que de nenhum modo ocorre no caso de hortícolas frescas. A falta de orientação aos produtores para tomada de decisões que atendam às suas necessidades de produção e que satisfaçam as demandas de mercado é um dos entraves que contribuem para as perdas ao longo da cadeia produtiva. Deve-se considerar também que essas perdas não se limitam somente aos frutos ou hortaliças que foram descartados. Ao se jogar fora o alimento/produto final, também são desperdiçados os recursos empreendidos para sua produção: solo, água, energia solar, energia humana, sementes, fertilizantes e tecnologias – com toda a pesquisa, conhecimento e trabalho empregados para gerar a produção.
A segunda dimensão está no campo do abastecimento e comercialização, englobando os mercados atacadista e varejista. Analisando a comercialização dos hortícolas, notamos a complexidade desse sistema, com a falta de adoção de uma linguagem comum de mercado, a falta de padronização, gerando desconfiança e ineficiência ao processo. A concentração do varejo em grandes redes e a força do atacado criam uma enorme dificuldade e vulnerabilidade ao produtor para a comercialização dos hortícolas. A cadeia de transportes promove perdas devido a fatores como estradas rurais e/ou secundárias mal conservadas; processo de manuseio excessivo e inadequado do produto no momento de carga e descarga de caminhões e uso de embalagens e empilhamento inadequados, além das dificuldades logísticas e burocráticas em portos e aeroportos. Outro fator crítico é a inexistência ou precariedade de cadeia de frio e do emprego de boas práticas pós-colheita, o que contribui para acelerar a perecibilidade intrínseca do hortícola, material vivo.
A terceira esfera está no consumo, que compreende a educação para um consumo sustentável. Todos esses acréscimos percentuais de perdas ao longo da cadeia contribuem de forma direta para o desperdício de alimentos e para o aumento do preço final do produto que chega ao consumidor. Para que o ecossistema da produção de alimentos funcione com sustentabilidade social e ambiental, é imprescindível a integração dos diferentes elos da cadeia, vertical e horizontalmente.
O desafio é grande, e a equipe de pesquisadores de pós-colheita do Instituto Agronômico - IAC, sediada no Centro de Ecofisiologia e Biofísica, tem concentrado seus esforços no emprego da ciência e no desenvolvimento de tecnologias para a conservação de qualidade de produtos hortícolas e redução de perdas, por meio da integração de diversas áreas do conhecimento.
A fisiologia, com estudos dos processos fisiológicos e bioquímicos que ocor
rem nos frutos, flores e hortaliças após a colheita, é uma área fundamental para a pós-colheita, uma vez que suporta a base do conhecimento necessário para a área tecnológica. Entender como os eventos do amadurecimento são regulados significa a possibilidade de manipulá-los, visando à obtenção de produtos com qualidade e com o mínimo de perdas na pós-colheita (Figuras 1 a 7). Exemplo de estudos na área é a pesquisa voltada ao conhecimento da fisiologia pós-colheita das novas tangerinas desenvolvidas ou introduzidas pelo IAC, para auxiliar no desenvolvimento de técnicas adequadas para a conservação, armazenamento e comercialização desses cultivares. A produção de tangerinas no estado de São Paulo é dominada pela tangerina ‘Ponkan’ e o tangor ‘Murcott’, que juntos representam mais de 80% da área plantada. É importante a ampliação e fortalecimento do mercado interno de citros de mesa por meio da diversificação, da oferta de novas cultivares e de melhoria na qualidade da fruta, envolvendo, inclusive, avanços em aspectos relacionados à comercialização. As tangerineiras ‘Fremont’ e ‘Maria’, estudadas pelo programa de melhoramento do Centro de Citricultura Sylvio Moreira/IAC, demonstram características organolépticas promissoras, no entanto estudos de fisiologia e conservação pós-colheita são necessários para que sejam traçadas estratégias eficientes de conservação para esses cultivares. A equipe de pós-colheita do IAC vem pesquisando as condições ideais de colheita e armazenamento da ‘Maria’ e, até o momento, as pesquisas indicam que a colheita um pouco mais tardia e o armazenamento a 5 oC, são as melhores condições para a obtenção da qualidade máxima e conservação pós-colheita dessa tangerina (Figura 8). Já a tangerina cv. ‘Fremont’ pode ser armazenada a 10 oC; para os frutos não refrigerados, a aplicação de cera de recobrimento parece promissor para conservação de suas características.
Figura 1. Avaliação da qualidade de frutos –
determinação de vitamina C.
Figura 2. Avaliação da qualidade de frutos –
determinação de acidez titulável.
Figura 3. Análise de gases (O2/CO2) no armazenamento pós-colheita de frutos.
Figura 4. Análise de textura para
determinação da qualidade pós-colheita.
Figura 5. Colorímetro para avaliação da cor de frutos.
Figura 6. Cromatografia gasosa para estudo da respiração e produção de etileno em frutos.
Figura 7. Estudo de temperatura ideal para refrigeração de goiabas.
Aliada à pouca informação sobre as hortícolas durante a pós-colheita, a falta de classificação também é forte aliada para as perdas desses alimentos. Produtos sem padronização e mal classificados, embalagens inadequadas, falta de rastreabilidade, desconhecimento das boas práticas de colheita e pós-colheita implicam em manuseio excessivo e reclassificação, gerando desconfiança nos setores de comercialização e afetando diretamente a qualidade e o preço do produto.
Para atender às exigências de qualidade do mercado, sistemas de classificação e caracterização objetiva e não destrutiva estão sendo desenvolvidos por meio do uso de sensores e dispositivos eletrônicos. A técnica de visão de máquina consiste na caracterização de um dado material utilizando-se imagens digitais.
Figura 8. Tangerina IAC 2019Maria.
Trabalhos recentes relatam o uso da visão de máquina para tarefas como detecção de danos, classificação por variedade, tamanho, formato, volume, coloração da casca, índice de maturação e qualidade de frutas e hortaliças. Nessa linha, o grupo de pós-colheita do IAC vem desenvolvendo estudos para a criação e adaptação de softwares com código-fonte aberto para habilitar o sistema de seleção e classificação, através do reconhecimento da forma, tamanho, volume, cor e danos mecânicos e/ou fisiológicos de diversos frutos (Figura 9). Em relação à classificação de frutas de caroço (ameixas, nectarinas e pêssegos), o método de classificação por imagens digitais desenvolvido pela equipe do IAC já é capaz de selecionar e classificar as frutas quanto ao calibre e coloração da casca com precisão e confiabilidade (Figura 10). Espera-se, num futuro próximo, que essa tecnologia possa ser implantada em mesas de classificação automatizadas usando-se imagens digitais, facilitando a classificação dos produtos.
Figura 9. Imagens digitais de tomates das cvs. Carmem (A), Debora (B) e Andrea (C), imagens das respectivas silhuetas (D, E e F) e os seus modelos 3D (G, H e I) utilizadas para desenvolvimento de técnicas de classificação por volume.
Figura 10. Etapas do desenvolvimento da rotina computacional para a determinação da coloração da casca de pêssego.
Considerando os tratamentos empregados durante a pós-colheita que visem à preservação da qualidade dos produtos, a refrigeração é sem dúvida um dos métodos mais importantes (Figura 11). No armazenamento por longos períodos, como no transporte marítimo de flores de corte, muitas vezes há necessidade do uso de atmosfera controlada (modificação da concentração de gás carbônico e oxigênio) como complemento à refrigeração. A construção de um fluxocentro portátil foi fundamental para o estabelecimento das condições ideias de concentrações gasosas para o armazenamento de flores em ambiente refrigerado (Figura 12). Essa técnica gera condições para a exportação de flores de corte por via marítima, garantindo a qualidade do produto até o consumidor final.
Figura 11. Câmaras de refrigeração.
Figura 12. Fluxocentro para simulação de atmosfera controlada para flores.
Um dos fatores que afetam a qualidade pós-colheita de frutas, hortaliças e flores é a ocorrência de podridões. Durante o desenvolvimento dos frutos e após sua colheita, a resistência natural a doenças geralmente declina, acarretando os inevitáveis processos de infecção, doença e morte dos tecidos. As doenças pós-colheita causadas por fungos são provenientes de infecções quiescentes, estabelecidas no campo, ou de infecções por ferimentos, que podem ocorrer durante subsequente colheita e manuseio.
O uso de fungicidas em pós-colheita está cada vez mais limitado, em vista da crescente preocupação com a segurança ambiental e a procura por alimentos seguros. Ressalta-se que, no Brasil, poucas são as moléculas registradas para uso em pós-colheita para a maioria dos frutos, hortaliças e flores. Desse modo, vários métodos alternativos de controle aos agrotóxicos vêm sendo estudados, destacando-se alguns processos físicos (refrigeração, UV-C, altas concentrações de CO2, tratamento térmico), a quitosana, o etanol, o ácido acético, inibidores da síntese ou ação do etileno e os agentes de controle biológico. Alguns destes podem atuar diretamente no controle de podridões bem como por meio da indução de respostas de defesa nos tecidos.
O resfriamento reduz significativamente o metabolismo dos microrganismos e, consequentemente, a deterioração dos produtos vegetais, porém não é erradicante, o que exige ações e tratamentos complementares. O tratamento térmico vem sendo utilizado comercialmente em mamão e manga para controle de moscas-das-frutas ou de podridões pós-colheita. Esse tratamento também se mostra eficiente no controle de podri
dões pós-colheita em outros frutos. Trabalhos desenvolvidos no IAC demonstraram efetivo controle da antracnose em goiabas por meio da imersão dos frutos em água aquecida (50°C por 10 min), na redução da incidência e severidade do bolor verde em tangor ‘Murcott’ (50°C por 5 min), especialmente em frutos mantidos a 25°C após os tratamentos (Figura 13). Pesquisas estão sendo desenvolvidas objetivando o controle do bolor verde em tangerina ‘Fremont’; os resultados indicam redução da podridão pela imersão dos frutos em água a 55°C por 5 minutos. Sistemas mais eficientes e econômicos no uso de água e energia elétrica são requeridos visando à sustentabilidade ambiental.
Figura 13. Tratamento térmico para controle de Penicillium digitatum em tangerina.
A luz ultravioleta (UV-C), radiação não ionizante, também exerce efeito germicida e pode prolongar o período de armazenamento dos frutos, promovendo a indução dos mecanismos de resistência ao ataque de patógenos. Verificou-se, por exemplo, que a UV-C foi eficiente na redução de Colletotrichum gloeosporioides em bagas de uva ‘Niagara Rosada’, previamente inoculadas, e não alterou os atributos físico-químicos dos cachos.
Um produto químico natural que vem sendo bastante estudado para a conservação pós-colheita e controle de podridões em frutas é a quitosana, um polissacarídeo de alta massa molecular, derivado da quitina, que pode atuar no controle de doenças por meio da ativação de respostas de resistência, como fitoalexinas e proteínas relacionadas à defesa, ou pelo efeito direto sobre microrganismos. Além disso, devido à sua habilidade para formar um filme semipermeável, a quitosana pode modificar a atmosfera ao redor do produto e diminuir a respiração e a transpiração dos frutos. Resultados positivos foram encontrados no controle da podridão mole em caquis, da mancha preta dos citros em laranjas ‘Valência’, do mofo cinzento em uva ‘Itália’ e, mais recentemente, estudos vêm sendo desenvolvidos pela equipe da pós-colheita do Instituto Agronômico, em citros de mesa, para o controle do bolor verde (Figuras 14 e 15).
Figura 14. Inoculação de fitopatógenos em frutos para estudos de doenças pós-colheita.
Figura 15. Microscopia para identificação de fitopatógenos em pós-colheita.