A Importância da Normatização

Hamilton Humberto Ramos¹ e Viviane Corrêa Aguiar¹

1 Centro de Engenharia e Automação Instituto Agronômico

História da qualidade de vestimentas de proteção para aplicadores de agrotóxicos no Brasil

1. Introdução

Com as primeiras aplicações de agrotóxicos no Brasil, relatadas na década de 1940, inicia-se a preocupação com a segurança do trabalhador e com o uso de equipamentos de proteção individual (EPI) na agricultura. Naquela época, os EPIs eram adaptados da indústria, confeccionados com material grosso, pesado e impermeável que, além de proporcionar baixo conforto e segurança, dificultava as operações no campo. Apesar disso, em 1977, a Lei 6.514 torna obrigatórios o fornecimento e a manutenção dos EPIs e especifica que só poderiam ser expostos à venda ou utilizados com a indicação do Certificado de Aprovação (CA) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A partir de então, inicia-se um processo de obrigação do uso de EPIs não apropriados e que em muito contribuem para a rejeição à utilização frequentemente observada nos trabalhadores rurais. São heranças daquela época, por exemplo, a utilização de capas de material impermeável, como a trevira, causando desidratação dos trabalhadores. Em 1989, o problema é agravado com a Lei 7.802, também conhecida como Lei dos Agrotóxicos, com a obrigação de que se conste no rótulo dos agrotóxicos os EPIs a serem utilizados.

A partir de então, os EPIs passam a ser recomendados apenas segundo a classe toxicológica do produto. Existem aí dois problemas principais: os EPIs tanto para o preparo de calda quanto para a aplicação são apresentados nos rótulos na forma de pictogramas, cujo entendimento por parte do trabalhador é muito dificultado; além disso, desconsidera-se totalmente que o risco é função da toxicidade e da exposição, e que esta última pode mudar
significativamente segundo o método de aplicação empregado. Dessa maneira, um trabalhador que utilize um trator cabinado (baixa exposição ao produto) e outro que faça uso de um pulverizador costal manual (alta exposição ao produto), desde que aplicando um mesmo agrotóxico, devem utilizar o mesmo EPI especificado no rótulo.

A partir de então, os EPIs passam a ser recomendados apenas segundo a classe toxicológica do produto. Existem aí dois problemas principais: os EPIs tanto para o preparo de calda quanto para a aplicação são apresentados nos rótulos na forma de pictogramas, cujo entendimento por parte do trabalhador é muito dificultado; além disso, desconsidera-se totalmente que o risco é função da toxicidade e da exposição, e que esta última pode mudar
significativamente segundo o método de aplicação empregado. Dessa maneira, um trabalhador que utilize um trator cabinado (baixa exposição ao produto) e outro que faça uso de um pulverizador costal manual (alta exposição ao produto), desde que aplicando um mesmo agrotóxico, devem utilizar o mesmo EPI especificado no rótulo.

Durante todo esse tempo, portanto, a recomendação dos EPIs foi feita de maneira indiscriminada, como única forma de segurança, esquecendo-se de que eles apenas atenuam a probabilidade de acidentes e que podem representar uma considerável carga de desconforto, principalmente térmico. Além disso, até então, apesar de a percepção do risco ser influenciada por fatores de ordem cultural, social, econômica e psicológica, nenhuma preocupação com treinamentos foi observada. Apenas em 2005, com a publicação da NR 31, pelo MTE, é que se pode observar na legislação a preocupação com treinamento e com fornecimento de EPIs e vestimentas adequadas aos riscos e que não causem desconforto térmico prejudicial ao trabalhador. 

Figura 1. Exemplos de aplicação de defensivos.

Marco histórico

O marco histórico da segurança do trabalhador foi a publicação, em 30 de setembro de 2009, da Portaria nº 121, do MTE, extinguindo, no Brasil, o CA por responsabilidade e instituindo normas de qualidade para todos os EPIs, com prazos para que os fabricantes pudessem se adequar à nova regulamentação. Só a partir de então é que todo o esforço desenvolvido pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) e seus parceiros, para o estudo e discussão dessas normas e da sua adequação às condições brasileiras, ficou evidente para a área rural.

Nesse sentido, destaca-se o trabalho conjunto de fabricantes e usuários de EPIs com instituições de pesquisa e governamentais, desde 2004, junto à Comissão de Estudos CE-32:006.03 – Comissão de Estudos de Luvas e Vestimentas de Proteção – Riscos Químicos, do CB-32 – Comitê Brasileiro de Equipamentos de Proteção Individual (ABNT/CB-32), que funciona sob os auspícios da Associação Nacional da Indústria de Material de Segurança e Proteção ao Trabalho (ANIMASEG), com o objetivo de desenvolver normas que atestem a qualidade dos EPIs disponibilizados ao agricultor, sempre em sintonia com os trabalhos desenvolvidos também na Organização Internacional de Normatização (ISO), uma vez que o Brasil é signatário de acordos que o impedem de especificar normas próprias para assuntos em que haja uma norma internacional.

Programa IAC de qualidade de equipamentos de proteção individual na agricultura (QUEPIA)

Em paralelo aos trabalhos desenvolvidos na CE-32:006.03, outro esforço na área de pesquisa e desenvolvimento mostrou-se necessário em função da seguinte visão: se o setor agrícola preocupar-se apenas com a elaboração de normas, quando estas forem definidas, os materiais e equipamentos então existentes poderão não estar aptos para atendê-las na integridade, sendo impedidos de obter a renovação do CA.

Assim, o trabalhador poderá ainda continuar nu em relação à proteção. Dessa forma, nasceu, em 2006, o Programa IAC de Qualidade de Equipamentos de Proteção Individual na Agricultura (QUEPIA), parceria entre o Centro de Engenharia e Automação do Instituto Agronômico (CEA/IAC), da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo (SAA), e empresas fabricantes de vestimentas de proteção por meio da Fundação de Apoio à Pesquisa Agrícola (Fundag), cujos objetivos principais eram desenvolver estrutura de laboratório para realizar e avaliar as normas em estudo para discussão na CE-32:006.03 e ISO; analisar materiais e vestimentas de proteção disponíveis no mercado brasileiro quanto à sua adequação às normas em estudo e auxiliar no processo de desenvolvimento de novos materiais mais seguros. Essa parceria entre fabricante, usuário, pesquisa e instituição normativa mostrou-se fundamental na definição dos padrões de qualidade para vestimentas de proteção para trabalhadores com agrotóxicos como existem hoje no Brasil.

A Portaria No 121 dividiu as vestimentas para riscos químicos em duas partes distintas: risco químico geral e risco químico com agrotóxicos. Para ambas, a norma base de qualidade era a ISO 16602, publicada em 2007, desenvolvida para risco químico geral e que divide as vestimentas em 6 níveis decrescentes de proteção. Essa norma já vinha sendo estudada na CE32:006.03 desde 2004 e, em vários pontos, não se mostrava adequada a vestimentas para aplicação de agrotóxicos. Como exemplo, avaliou-se no laboratório do QUEPIA a resistência à penetração química proporcionada por 52 diferentes materiais usados na confecção de vestimentas de proteção, utilizando-se soluções de ácido sulfúrico (H2SO4), hidróxido de sódio (NaOH), butanol e ortoxileno, que são os líquidos para teste especificados na ISO 16602; para aprovação, o material deve atender aos padrões estabelecidos para pelo menos um deles.

Figura 2. Ensaio de penetração (esquerda) e permeação (direita).

Nesse teste, observou-se que a grande maioria dos materiais foi aprovada apenas para o NaOH, tendo altos índices de penetração para outros líquidos. Como não se espera que os agrotóxicos tenham uma natureza química sempre semelhante ao NaOH, julgou-se que a proteção poderia não ser adequada. Exatamente nesse ponto do processo, a Portaria No 121 foi publicada. Felizmente, já havia em discussão no âmbito da ISO, e consequentemente da CE32:006.03, a ISO DIS 27065, uma norma em desenvolvimento especificamente para qualidade de vestimentas de proteção para aplicação de agrotóxicos, que, apesar dos estudos preliminares, já havia se mostrado mais adequada que a ISO 16602. Em função disso, abriu-se discussão com o MTE e, em 22 de julho de 2010, por meio da publicação da Portaria No 189, do MTE, o Brasil passa a adotar a ISO 27065, mesmo em final de desenvolvimento, como padrão de qualidade para vestimentas de proteção para riscos químicos com agrotóxicos, tornando-se o primeiro país no mundo a ter lei específica para isso.

A importância dessa lei em relação à segurança do trabalhador é evidenciada pelos fatos posteriores obtidos pelo QUEPIA, que passou a não mais fazer apenas pesquisa, mas também a realizar ensaios de qualidade com a finalidade de emissão de laudos a serem utilizados no processo de renovação dos CA. Até 2012, dos 163 modelos diferentes de vestimentas ensaiados, cerca de 51% foram reprovados. Considerando-se que só são enviadas ao laboratório vestimentas em que se acredita na qualidade, estima-se que o problema no campo poderia ser ainda maior. Norma é algo dinâmico, e a ISO 27065, apesar do pouco tempo de publicação, já está em revisão. Além disso, já se discute também a ISO 18889, específica para luvas para o trabalho com agrotóxicos, e a ISO 19918, um novo método para análise de permeação do produto químico a ser utilizado tanto na ISO 27065 quanto na ISO 18889 para análise da qualidade de materiais desenvolvidos para proporcionar maior nível de segurança.

Em todos esses processos, os trabalhos da CE-32:006.03 e do QUEPIA são considerados e muitas das inovações em estudo hoje foram propostas pelo Brasil, que, além de resultados de pesquisas com o necessário embasamento técnico para isso, deixou nos últimos 5 anos de ser membro observador para ser membro efetivo no ISO/ TC94/SC13 – Vestimentas de Proteção, participando de todas as reuniões anuais e dos ensaios interlaboratoriais propostos.

Através da normatização, a qualidade é sempre um processo em desenvolvimento, com parâmetros claros a serem seguidos por aqueles que a buscam e que se preocupam com a segurança, com benefícios a toda cadeia. Todos podem participar do processo, as reuniões do CE-32:006.03 são abertas e ocorrem normalmente no Centro de Engenharia e Automação do Instituto Agronômico, em Jundiaí (SP), onde também está o laboratório do QUEPIA. Maiores informações podem ser obtidas nos sites www.abnt. org.br/cb-32 ou www.quepia.org.br.

Figura 3. Ensaio de vestimenta e resistência química.

Consideração finais

Pelo exposto, a evolução dos EPIs para a área agrícola demorou a ser iniciada, entretanto ações sistematizadas e coordenadas estão sendo tomadas para que possa ser acelerada, o que está levando a uma melhoria significativa em curto espaço de tempo. Mais do que buscar culpados pela situação, o Brasil tem buscado soluções, e o estabelecimento de padrões por meio da normatização foi um importante passo para isso. Muito há ainda a se realizar, e as pesquisas do Centro de Engenharia e Automação do Instituto Agronômico, por meio do QUEPIA, serão ainda por muitos anos importante ferramenta para a segurança e a saúde do trabalhador na agricultura