IAC na bioeconomia da citricultura brasileira
Por Marcos Antônio Machado¹ e Joaquim Teófilo Sobrinho
1 – marcos@centrodecitricultura.br – Centro Avançado de Pesquisa Tecnológica do Agronegócio de Citros “Sylvio Moreira”, IAC.
Introdução
A citricultura paulista é, sem dúvida, o segmento do agronegócio em que o termo bioeconomia mais se aplica. Representada por uma cadeia de produção organizada em setores distintos, tem a base biológica representada principalmente pelo quadro de cultivares copa e porta-enxertos, o principal suporte para sua expansão econômica. Se a existência de tecnologia de produção é um dos fatores que explica a possibilidade de expansão do setor citrícola, a existência de um mercado externo para o suco de laranja é outro fator que resume bem o setor citrícola paulista. Pode-se afirmar que a existência de tecnologia foi a base para a expansão de um setor que encontrou no mercado externo seu principal canal de comercialização. Mesmo enfrentando desafios crescentes de ordem fitossanitária, a citricultura estabeleceu-se como um dos principais setores da bioeconomia brasileira. Seus desafios científicos, tecnológicos e econômicos são constantes e crescentes, exigindo estratégias de médio e longo prazos para solução de problemas, principalmente de ordem fitossanitária. O grande número de doenças virais, bacterianas e fúngicas que afetam espécies de citros torna os programas de melhoramentos desafio de gerações. O advento da biotecnologia e das ômicas (genoma, transcriptoma e proteoma) tem ampliado sobremaneira o nível de conhecimento sobre esse grupo de plantas, com reais perspectivas na solução de desafios complexos, como o entendimento dos processos que levam às doenças e novas abordagens para controlá-las.
O Instituto Agronômico, através de seu Centro de Citricultura Sylvio Moreira, tem atuado de modo relevante para o desenvolvimento da citricultura paulista. Ao longo de seus 88 anos, suas atividades envolvem todos os aspectos relevantes da citricultura, tornando-se um dos principais centros de pesquisa e desenvolvimento dedicados exclusivamente aos citros no Brasil.
A bioeconomia citrícola
Representando mais de 79% da citricultura brasileira e 95% da produção e exportação de suco de laranja, o agronegócio citrícola paulista contribui com um faturamento de exportação anual da ordem de 1,5 a 3 bilhões de dólares, principalmente em suco concentrado congelado (FCOJ) e não concentrado (NFC, not from concentrated) e subprodutos como pectina, farelo e óleo. No Estado de São Paulo, é responsável direto por cerca de 400.000 empregos diretos e indiretos, envolvendo cerca de 11.561 propriedades rurais. Pomares de citros ocupam uma área de 430 mil hectares, 197 milhões de plantas, sendo 89% de laranja doce. O destino da produção anual de 278 milhões de caixas (40,8 kg) em 2016 está distribuído entre a indústria (71,5 a 75%), o consumo interno de fruta fresca (25 a 28%) e a exportação de fruta fresca (<0,5%). Desse modo, os citros ocupam o terceiro lugar (atrás da cana-de-açúcar e do milho) em área plantada, suplantando eucalipto, soja e café. Embora tenha uma área várias vezes menor que a cana-de-açúcar, eles respondem por 22,34% do valor bruto da produção vegetal em São Paulo e são responsáveis pelo maior faturamento (US$ 141,95) por hectares entre várias grandes culturas.
O setor agroindustrial citrícola responde ainda pelo consumo de cerca de 7% das vendas de defensivos, com tendência crescente diante dos controles de pragas e de vetores de doenças que ocorrem na citricultura. Fertilizantes, máquinas e implementos, produção de mudas em ambiente protegido e irrigação são setores que movimentam milhões de reais na economia brasileira graças à forte participação do setor citrícola.
Embora as condições edafoclimáticas favoreçam a cultura dos citros em várias regiões do Brasil, e especialmente no Estado de São Paulo, a produtividade média ainda é baixa quando comparada a outros países. No Estado de São Paulo, a produtividade média está em torno de 2 caixas/planta/ano, podendo chegar a 2,5 caixas/planta/ano. A produtividade da Flórida, antes da expansão do huanglongbing e do cancro cítrico nos anos 2010, era de 6 caixas/planta/ano, principalmente devido ao uso intensivo de irrigação. Destaque-se ainda que a alta incidência de pragas e doenças na citricultura brasileira contribui para a redução de produtividade e aumento dos custos de produção.
No Estado de São Paulo, a citricultura expandiu-se do vale do Paraíba para a região de Limeira e Sorocaba, a partir da década de 1920, apoiada principalmente no planejamento e pesquisa direcionados pela Secretaria da Agricultura e pela Escola Agrícola de Piracicaba (atualmente Esaq/USP), através de ações de Edmundo Navarro de Andrade, Philipe Westin Cabral de Vasconcelos, Agesilau A. Bitancourt, José Pinto da Fonseca e Mario Autuori. Em estreita associação com a penetração da malha ferroviária no Estado de São Paulo e como alternativa à cultura do café, a citricultura recebeu especial atenção dos setores oficiais de pesquisa e passou a ser opção para produtores habilitados à condução de cultivos perenes.
Principalmente associada ao aumento da demanda externa por fruto fresco, mais que pelo mercado interno, a década de 1930 representou o estabelecimento definitivo da citricultura no Estado de São Paulo. Com bom nível tecnológico, como o uso de porta-enxertos mais produtivos e um adequado sistema de formação de mudas, a citricultura paulista expandiu-se até o limite imposto pela drástica redução da demanda em consequência da segunda guerra e pela introdução do vírus da tristeza dos citros no Brasil. Nesse período, a Estação Experimental de Limeira, atualmente Centro de Citricultura Sylvio Moreira/IAC, criada em 1928, por sugestão de Navarro de Andrade ao então secretário da Agricultura Fernando Costa, já representava um polo de pesquisa, estabelecendo e mantendo uma ampla coleção de cultivares, base de toda a atual citricultura brasileira. Essa ainda é a maior coleção de cultivares de citros e gêneros afins do Brasil.
Como muitas atividades agroindustriais, a evolução da citricultura está intimamente associada ao aumento da demanda no mercado externo. Iniciou-se com a exportação de fruta fresca para a Argentina no início do século, culminando com o primeiro lugar mundial na produção de laranja para suco concentrado, ultrapassando os EUA a partir de 1982.
A partir de experimentos sobre porta-enxertos realizados por Sylvio Moreira, assim como sobre transmissão e etiologia da tristeza, sob responsabilidade de Bittancourt e Meneguini do Instituto Biológico, foi possível retomar a citricultura como atividade comercial depois de seu completo aniquilamento pela tristeza na década de 1940. A troca do porta-enxerto laranja Azeda, extremamente suscetível à tristeza, pelo limão Cravo, representou um dos marcos da contribuição da pesquisa no estabelecimento da citricultura brasileira.
A convivência com a tristeza tornou-se uma realidade não só pela mudança do porta-enxerto como também pelo uso da pré-imunização com estirpes protetivas do vírus como uma estratégia bem sucedida de utilização da proteção cruzada, desenvolvida por Álvaro Santos Costa e Gerd Walter Müller. Muitos países passaram a utilizar a proteção cruzada para controle da tristeza dos citros. Atualmente, mais de 68 milhões de plantas de laranja Pera pré-imunizadas no Estado de São Paulo respondem por cerca de 25 a 30% da produção de laranja, atendendo não só a indústria como o mercado de fruta fresca.
Mesmo com o conhecimento da etiologia da tristeza e a mudança de porta-enxerto, a citricultura ainda teve outros percalços relacionados à detecção da exocorte, causada por um viroide que afeta principalmente plantas enxertadas sobre o limão Cravo, o porta-enxerto que substituiu a laranja Azeda. Esse viroide estava presente em muitos cultivares comerciais, mas não afetava as plantas, pois a laranja Azeda é tolerante aos seus efeitos. Uma vez que até então não se sabia que várias plantas das cultivares comerciais estavam infectadas com esse viroide, a retomada da citricultura a partir de clones, conhecidos como clones velhos, dessas cultivares teve que ser adiada. Com a comprovação que vírus e viroide de citros não são transmitidos por sementes e com o conhecimento do processo de produção de sementes apomíticas de origem nucelar, foi possível produzir clones nucelares, portanto, clones idênticos à planta mãe, porém completamente sadios. Tais clones nucelares, também conhecidos como clones novos, passaram então a ser a base da moderna citricultura brasileira. Tiveram atuação decisiva nessa estratégia os pesquisadores Sylvio Moreira, Vitória Rossetti e Ary Aparecido Salibe.
Se a década de 1960 iniciou-se com mais um desafio fitossanitário com o cancro cítrico, ela representou a largada para um dos mais importantes segmentos do setor: a produção e a exportação de suco concentrado de alto grau Brix. O estabelecimento de indústrias no interior do Estado, atendendo a uma demanda externa, explica a atual cadeia produtiva dos citros. O aumento da demanda por suco, principalmente da Flórida em função de sucessivas geadas em tradicionais áreas produtoras, tornou-se dessa forma a principal mola propulsora da citricultura paulista, fazendo de São Paulo a principal área produtora e exportadora do mundo. A grande expansão da citricultura paulista na década de 1960, associada às fortes geadas na Flórida, a incentivos São Paulo, à adequada infraestrutura de transporte e porto e à existência de tecnologia de produção, representada por cultivares copa e porta-enxertos, manejo e fertilidade do solo, permitiu a consolidação de uma indústria de processamento que passou a demandar mais de 265 milhões de caixas de 40,8 kg por ano. Fica, portanto, patente a importância de tecnologia de produção que pudesse sustentar a expansão da citricultura paulista.
A forte expansão da citricultura paulista nas regiões norte e centro do Estado nos anos 1970, representada principalmente por expansão de áreas de plantio, apoiada em praticamente um único porta-enxerto e poucas cultivares copa, também cobrou um preço ao setor. O declínio dos citros, anomalia de etiologia ainda desconhecida, expandiu-se em todas as regiões, afetando principalmente o limão Cravo. A diversificação de porta-enxertos, constante e contínua recomendação do setor de pesquisa, passou a ser uma necessidade.
Na citricultura paulista, os anos 1980 são lembrados pelo surgimento da clorose variegada dos citros, doença causada pela Xylella fastidiosa, amplamente distribuída no Estado através de borbulhas infectadas. Novamente o setor de pesquisa apresentou respostas para seu controle, principalmente na produção de mudas em ambiente livre de vetores e com borbulhas certificadas para qualidade genética e fitossanitária. A partir daí o setor de produção de mudas no Estado de São Paulo passou a ser referência para o mundo. A década de 1990 se encerrou com a constatação de uma nova doença associada ao porta-enxerto: a morte súbita dos citros. Mais uma vez comprovou-se que a diversificação de porta-enxertos sempre foi a melhor garantia para sustentabilidade do pomar. No entanto, dessa vez, perdeu-se uma das mais importantes características do limão Cravo, que é sua tolerância ao défice hídrico: essa foi uma das principais características que permitiram a expansão da citricultura para o norte do Estado de São Paulo.
Pinta preta, causada por Phyllosticta citricarpa, e mancha marrom de alternaria (Alternaria alternata) foram novos patógenos introduzidos na citricultura paulista, exigindo rígido controle químico, aumento de custos e crescimento de barreiras fitossanitárias para exportação. Alguns deles, como A. alternata, impõem restrição especialmente ao cultivo de tangerinas, um importante segmento do setor de produção de fruta de mesa. Embora novos patógenos fossem introduzidos na citricultura, outros patógenos importantes continuaram a afetar a produção de citros e a aumentar seus custos, entre eles a leprose dos citros (causada pelo vírus do leprose dos citros e transmitido pelo ácaro Brevipalpus spp.), Phytophthora parasítica (agente da gomose dos citros) e o cancro cítrico (causado pela bactéria Xanthomonas citri subsp citri). Esse último por muito tempo mantido fora das principais áreas de produção de citros do Estado.
O século XXI trouxe à citricultura o maior de todos os seus desafios fitossanitários: o huanglongbing (HLB) dos citros, muitas vezes referido como greening dos citros. Causado por uma bactéria (Candidatus Liberibacter spp), restrita ao floema e transmitida por um psilídeo (Diaphorina citri), o HLB é a mais devastadora e destrutiva doença dos citros, responsável pela extinção da citricultura na maior parte da Ásia e, atualmente, na Flórida.
Desafios para inovação
Os desafios impostos à solução definitiva ou sustentável dos principais problemas dos citros são consideráveis e exigem equipes multidisciplinares e programas que não sofram solução de continuidade. Portanto, é muito oportuno que o termo bioeconomia passe a ser utilizado para caracterizar o complexo agrícola, industrial e econômico da citricultura brasileira.
As soluções para seus desafios virão necessariamente do setor biológico com a incorporação crescente de novas tecnologias ao melhoramento de citros, como genética molecular, genômica de citros e de seus patógenos, mapas genéticos, produção de plantas geneticamente modificadas e novas tecnologias de edição de genomas. São todas ferramentas que ampliam o conhecimento sobre o grupo citros e sobre os principais processos que levam doenças limitantes à citricultura. Tais conhecimentos têm permitido direcionar o programa de melhoramento do Instituto Agronômico, tornando-o focalizado na solução de problemas específicos, e reduzindo os riscos de incertezas.
Variações na tolerância à seca