Potencial da cultura da mandioca para bioenergia

José Carlos Feltran¹, Teresa Losada Valle, Cassia Regina Limonta Carvalho, Eduardo Barreto Aguiar e Lilian Cristina Anefallos

1 – feltran@iac.sp.gov.br – Centro de Pesquisa Tecnológica do Agronegócio de Horticultura, IAC.

Introdução

A produção biológica tem papel fundamental na economia mundial. Vários problemas globais encontram a solução, ou parte da solução, na produção biológica e seus derivados. A bioenergia é o exemplo atual mais enfático. É uma parte da solução para redução de emissões de carbono e controle do aquecimento global, além de ser uma fonte de energia renovável. O etanol, atualmente, é o mais importante produto vindo da bioenergia porque substitui total ou parcialmente os combustíveis fósseis que são poluentes e não renováveis.

O bioetanol é produzido a partir de espécies que armazenam carboidratos e são cultivados em grande escala. São açúcares (cana-de-açúcar), amido (milho, mandioca) e futuramente poderá ser acrescido o etanol de segunda geração, proveniente de materiais lignocelulósicos (florestas e resíduos de culturas). A produção de biomassa pode aumentar rapidamente desde que se disponha de tecnologia agrícola para cultivo em alta escala, como foi o caso de cana-de-açúcar no Brasil. O Brasil aumentou em aproximadamente 80% a área plantada e a produção de cana-de-açúcar nos últimos 10 anos, de 2005 a 2014, enquanto a produtividade incrementou em aproximadamente 20% nos últimos 20 anos (IBGE 2016). Considerando-se a complexa logística exigida, é um feito memorável. Os Estados Unidos aumentaram em aproximadamente 11% a área plantada de milho para grãos e a produção em 28% nos últimos 10 anos, de 2005 a 2014, já a produtividade cresceu aproximadamente 51% nos últimos 20 anos (USDA, 2016). O milho e a cana-de-açúcar são as principais matérias-primas para produção de bioetanol no mundo, e um exemplo real do potencial de bioenergia.

 

 

A possibilidade real de se produzir bioenergia em grande volume introduz na agenda da bioeconomia a produção de matérias-primas muito além do milho e da cana-de-açúcar. É necessário considerar a aptidão de outras espécies, além da cana-de-açúcar e do milho, para explorar diferentes ecossistemas porque são adaptadas e atendem as necessidades sociais e ambientais que passem a integrar uma matriz de bioenergia considerando-se as espécies com adaptação regional. Não há lógica em se conceber a produção mundial de bioenergia com base em apenas duas espécies quando há uma grande diversidade genética a ser explorada. A ausência dessas espécies deve-se, principalmente, ao baixo input tecnológico e ao esquecimento dessas culturas “não commodities” no ambiente de grandes agronegócios.

No entanto pode haver vantagens biológicas comparativas que as tornem viáveis se forem desenvolvidas tecnologias agrícolas eficientes que envolvam a diversidade genética para tolerância a estresses bióticos e abióticos, assim como foi feito com a cana-de-açúcar e o milho.

Biomassa

Entre as espécies com maior aptidão para produção de energia em ambientes tropicais, encontra-se a mandioca, que foi domesticada pelas populações pré-colombianas para armazenar amido nas terras baixas e quentes da América. Altamente adaptada a solos e climas tropicais com estresse hídrico e solos de baixa fertilidade, a mandioca foi e ainda é alimentação básica para as populações brasileiras de baixa renda e matéria-prima para a indústria de amido e farinha. Atualmente é a 9ª cultura no mundo em produção, com 280 milhões de toneladas anuais (FAO, 2016). O Brasil produziu em 2014 cerca de 23 milhões de toneladas dessa raiz. Na fronteira dos estados de São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul, há um complexo agroindustrial que cultiva 251 mil ha, produz e processa cerca de 6 milhões de toneladas anualmente, com alta produtividade (24,4 t/ha), e é centro de referência mundial em tecnologia de produção agrícola e processamento industrial (amido e farinha de mandioca). A seguir serão apresentados dados dessa região a fim de mostrar o alto potencial biológico da mandioca para a produção de energia, utilizando-se as raízes e os subprodutos da biomassa.

A mandioca é uma cultura tradicional e muito expressiva da agricultura brasileira (Tabela 1). É extremamente diversificada sua tecnologia de produção: desde agricultura de subsistência, produto de economia local e regional, até considerável componente do agronegócio, onde compete com soja e milho no Centro-Sul do Brasil. Tem germoplasma adaptado a todos os ecossistemas brasileiros, e, em alguns centros de produção, são utilizadas variedades melhoradas com alta capacidade produtiva. Evidentemente há muito a ser feito, mas totalmente factível desde que haja políticas públicas com esse objetivo, assim como foi feito com a cana-de-açúcar.


Tabela 1 – Produção anual brasileira (em milhões de toneladas) de culturas selecionadas para a
produção de energia. Fonte: IBGE

Em 2015, a área de produção de mandioca no Brasil foi da ordem de 2,10 milhões de hectares, no Centro-Sul do Brasil (SP, PR e MS) com produtividade média de 15,2 t ha-1 (IBGE, 2016). No levantamento da safra de 2015, o estado do Paraná tem área colhida de 142 mil hectares, São Paulo, 68 mil hectares, e Mato Grosso do Sul, 48,3 mil hectares colhidos com mandioca, todos com produtividade acima de 22 t ha-1. Em grande parte dessas áreas cultivadas, a produção de raízes destina-se para as indústrias de farinha e de amido, na proporção aproximada de ½ para a produção de farinha e ½ para a produção de amido. A produção total de raízes dos três estados atingiu 6,3 milhões de toneladas em 2015, e, consequentemente, quase 4,2 milhões de toneladas em resíduos da parte aérea, já que estudos feitos no IAC mostram que a biomassa de variedades melhoradas é 60% equivale à raízes tuberosas e 40% aos resíduos de colheita (parte aérea e cepas).

A mandioca é uma espécie com alta capacidade de produção de biomassa. O potencial máximo estimado em condições ótimas, através de modelos matemáticos de crescimento, prevê que bons genótipos possam produzir até 90 t/ha/ano de raízes ou 30 t/ha/ano de matéria seca. Em pequenas parcelas foram obtidas 28 t/ha/ano de matéria seca no Centro Internacional de Agricultura Tropical em Cali-Colombia (COOCK, 1985, pág. 78). No entanto, é em condições estressantes que a mandioca tem vantagens comparativas a outras culturas pela tolerância a fatores bióticos e abióticos. Mesmo nas regiões com melhor desempenho, há produtividades muito diferenciadas e consequentemente diferentes potenciais de produção de etanol utilizando-se o amido como matéria básica do processo (Tabela 2).


Tabela 2 – Valor energético de resíduos de campo de mandioca (rama + cepa) em duas regiões e
alguns produtores selecionados no Estado de São Paulo

Elaborado por T. L. VALLE (IAC) e W.A. BIZZO (UNICAMP).
1 Mogi-mirim (área colhida 2 638 ha ano-1; produção 97 650 t ano-1; média 2010-2015).
2 Assis (área colhida 12 558 ha ano-1; produção 346 821 t ano-1; média 2010-2015).
Fonte CATI/IEA (2016).
3 Variedade IAC 14 colheita com 2 ciclos (18 a 24 meses).
5 Poder calorífico superior 15,1 MJ kg-1 e Poder calorífico inferior 7,65 MJ kg-1 a 40% de umidade.
6 Uma residência popular consome em média 250 kWh mês-1.

Energia

A mandioca é cultivada para aproveitamento das raízes tuberosas. A parte aérea e a cepa são deixadas no campo (Figura 1). Esse resíduo abandonado tem cerca de 38% da matéria seca total produzida com valor energético de 17 MJ kg-1 e pode ser utilizado para várias finalidades, como alimentação animal ou como insumo energético (Tabela 3). Também pode ser considerado biomassa a ser reciclada no solo, contribuindo para o processo de sustentabilidade.

Estudos recentes financiados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), realizados no IAC em conjunto com a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol – (CTBE/CNPEM), avaliaram o uso integral da biomassa de mandioca para a produção de energia. Os resultados vêm demonstrando grandes potencialidades desta matéria prima, inclusive em termos comparativos com a principal matriz bioenergética do Brasil, o etanol de cana-de-açúcar (Tabela 3).

Tabela 3 – Partição estimada da biomassa seca e rendimento energético das principais variedades
de mandioca cultivadas no Estado de São Paulo (dados IAC não publicados).

1 Dados IAC não publicados estimados para as principais variedades de mandioca cultivadas
no Estado de São Paulo;
2 Rendimento estequiométrico (FERNANDES, 2011; PERRY e CHILTON, 1980); rendimento industrial
de extração de 95% do amido das raízes obtidos nas fecularias do Centro-Sul; teor
médio de amido das raízes de mandioca 32%; teor médio de açúcares fermentescíveis de
0,011% (dados IAC não publicados).

O aproveitamento integral da planta da mandioca para a produção de energia prevê a utilização das raízes para produção de etanol e a parte aérea e cepa (maniva-semente) como biomassa lignocelulósica para combustão ou mesmo para produção de etanol de segunda geração. Na tabela 3, observa-se que a maior parte da biomassa seca da planta de mandioca concentra-se nas raízes, 62%, e os resíduos correspondem a 38% da biomassa seca.

Figura 1 – Fluxograma da planta de mandioca com seus produtos
principais e possibilidades de usos. Fonte: IAC (2010).

Sustentabilidade

A parte aérea da mandioca tem composição mineral similar a de outras espécies cultivadas. Devido à amplitude do volume de biomassa produzido, a espécie é grande extratora de nutrientes (Tabela 4). Porém, nas raízes que são retiradas do campo os principais constituintes são a água e o amido. A parte aérea é mais rica em diversidade e concentração de minerais, assim a mandioca é excelente recicladora de nutrientes. A mandioca extrai mais nutrientes do que a cana-de-açúcar, porém exporta muito menos (Tabela 4), o que lhe confere perfil mais favorável para ambientes que são manejados de forma sustentável. Outra característica diferenciadora é a quantidade de nitrogênio exigido (232 kg ha-1); embora a mandioca tenha maior necessidade de N durante o ciclo, exporta apenas 69 kg ha-1, enquanto a cana-de-açúcar exporta 96 kg ha-1. Surpreendentemente, a mandioca tem baixíssimas necessidades de adubação nitrogenada, enquanto a cana-de-açúcar é bastante responsiva à disponibilidade desse nutriente. O perfil de ciclagem de nutrientes favorece a produção de mandioca em manejos sustentáveis e também o balanço energético. Fertilizantes nitrogenados necessitam de grandes fornecimentos de energia durante sua produção, sendo um fator de desequilíbrio no balanço energético.

Tabela 4 – Nitrogênio e outros macronutrientes extraídos, exportados e reciclados por cana-deaçúcar
e mandioca, em kg/ha. Fonte: SALLAS (2007).

* Cana-de-açúcar 100t ha-1.
** Mandioca 40 t ha-1.

Considerações Finais

A mandioca é uma cultura tradicional da agricultura em todos os ecossistemas do País. Tem alto potencial de produção de biomassa transformável em etanol. Em regiões que se obtêm altas produtividades, obtêm-se altos rendimentos em energia. Os resíduos agrícolas podem aumentar o rendimento de energia ou serem utilizados para a reciclagem de nutrientes e tornar a produção de energia mais autossustentável. Além do potencial biológico, pode colaborar para a regionalização da produção de energia e modelo de negócios voltado para pequenos agricultores. Assim, a mandioca é uma cultura com amplas possibilidades para integrar a matriz energética brasileira, justificando plenamente o investimento em desenvolvimento de tecnologias.