Água na agricultura e bioeconomia

Por Regina Célia de Matos Pires¹, José Rodrigues Magalhães Filho, André Luiz Barros de Oliveira Silva, Augusto Yukitaka Pessinatti Ohashi e Glaucia Cristina Pavão

1 – rcmpires@iac.sp.gov.br Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de Ecofisiologia e Biofísica, IAC

I) A Água na Agricultura

A água doce é um recurso natural finito no globo terrestre e seu uso irracional tem aumentado o risco de escassez hídrica para uso humano, industrial e agrícola (ANA, 2013; Rosegrant et al., 2013; FAO, 2015). No início da década passada, cerca de 70% de toda água utilizada pela atividade humana eram destinadas à irrigação, e a área irrigada correspondia a 18% do total cultivado no mundo, com produção representando 42% do total proveniente da agricultura (FAO, 2015). A maior parte da área de cultivo agrícola ocorre em condições de sequeiro, o que torna a produção agrícola vulnerável à escassez. O aumento da população mundial para as próximas décadas exigirá maior disponibilidade de alimentos, que ocorrerá em função da disponibilidade dos recursos hídricos e aumento da produtividade (Sadras et al., 2015). Dessa forma, há necessidade de uso racional e eficiente nos diferentes setores da sociedade para evitar a escassez hídrica e garantir a produção de alimentos, energia e bens e a sustentabilidade social, ambiental e econômica.

II) A Agricultura no Contexto da Bioeconomia

A sustentabilidade inserida no sistema econômico tradicional denomina-se bioeconomia, a qual há décadas é realidade em países da União Europeia e nos Estados Unidos da América (Scarlat et al., 2015; UNEP, 2011). Sucintamente, bioeconomia se enquadra em conceito amplo de economia verde, caracterizada por sistema econômico em que os processos produtivos, industriais e de serviços ocorrem de forma menos impactante ao meio ambiente. Assim, preconiza a utilização de processos que envolvem baixa emissão de carbono, uso dos recursos naturais de forma eficiente e socialmente inclusivo, com objetivo de promover melhoria do bem-estar humano, igualdade social e redução de riscos ambientais e escassez ecológica (Scarlat et al., 2015; UNEP, 2011). De acordo com Rosegrant et al. (2013), o conceito de bioeconomia engloba o crescimento econômico impulsionado pelo desenvolvimento de recursos biológicos renováveis e tecnologias para produtos sustentáveis, geração de emprego e renda e melhoria da qualidade de vida.

A bioeconomia, do ponto de vista agronômico, pode ser implementada com adoção de práticas agrícolas que preconizem a proteção e a sustentabilidade dos recursos naturais, as quais envolvem: 1) manejo de solo que promova preservação e melhoria dos atributos físico-químicos, hídricos e microbiológicos; 2) manejo fitossanitário com menor dependência de agroquímicos; 3) manejo nutricional a fim de evitar a poluição das águas superficiais e subterrâneas por excesso de sais, com melhoria de eficiência dos nutrientes no sistema produtivo; 4) adoção de culturas e materiais genéticos mais produtivos e eficientes em relação ao uso dos recursos naturais e com elevada biotecnologia; e 5) uso racional da água na agricultura, por meio de manejo sustentável com adoção de técnicas apropriadas para promoção de eficiência do uso da água, sistemas de irrigação adequados às culturas e aos ambientes de produção. Nesse contexto, o aumento da produtividade agrícola deverá ser atingido a partir do uso consciente dos recursos naturais associado às boas práticas agrícolas e à biotecnologia, e, para tanto, há necessidade de investimento para geração de ciência e tecnologia e difusão e treinamento para sociedade.

 

 

III) Manejo da Agricultura Bioeconômica

Do ponto de vista da produtividade, a deficiência hídrica (DH) é um dos principais fatores de redução da eficiência produtiva agrícola e por isso, a irrigação é técnica importante para aumento do potencial produtivo das culturas (Sadras et al., 2015). Entretanto, o aumento no uso dos recursos hídricos para atender o consumo humano aliado à necessidade de incremento da produção agrícola e industrial tem gerado conflitos políticos e econômicos entre os diversos setores da sociedade no mundo. Nesse cenário, torna-se fundamental a promoção da eficiência do uso da água (EUA) em todos os setores da sociedade. Na agricultura, isso ocorrerá a partir da adoção de técnicas que promovam redução no uso da água bem como uso sustentável por práticas de manejo do solo e da água. A EUA nos sistemas de produção agrícola pode ser estimada pela relação da produtividade alcançada por unidade de água utilizada.

O uso eficiente da água na produção agrícola requer o conhecimento da necessidade hídrica da cultura considerando o potencial de resposta e adaptação de diferentes materiais genéticos. Nesse contexto, ressalta-se estudo com três cultivares de cana-de-açúcar conduzido com e sem deficiência hídrica, o qual mostrou variação genótipo-dependente quanto à disponibilidade de água e efeito da irrigação na produtividade de colmos e à EUA (Ribeiro et al., 2013). No referido estudo, a cultivar IACSP96-2042 mostrou-se sensível ao estresse hídrico com redução de 50% na produção de massa seca dos colmos quando submetida à deficiência hídrica (DH) (Figura 1). Nesse exemplo, verificou-se que o uso da irrigação alcançaria resultados diferenciados nas cultivares e que a escolha poderá inferir na potencialização da produtividade e na EUA. Por outro lado, as cultivares IACSP94-2094 e SP87-365, que passaram pelo mesmo período e intensidade de DH, mantiveram a produção de massa seca de colmos (Figura 1) mesmo com disponibilidade hídrica adequada, o que indica que não seriam priorizadas para investimento em irrigação, mas para cultivo em sequeiro.
A potencialidade de resposta à irrigação na produtividade do cafeeiro na região de Mococa foi observada por SAKAI et al. (2013, 2015) com adoção de uso racional da água. Com adoção de irrigação por gotejamento foi verificado incremento de 4,4 vezes na produtividade de grãos de café (3.775 kg ha-1 verus. 853 kg ha-1) em plantas com três anos de idade (Figura 2). O método de irrigação utilizado é considerado eficiente, mas é importante ressaltar que foi adotado manejo de água e que as irrigações foram complementares às chuvas ocorridas.

Figura 1 – Massa seca de colmos de três cultivares de cana-de-açúcar (IACSP94-2094, SP87-365 e IACSP96-2042) cultivadas sem e com deficiência hídrica aplicada na fase inicial de crescimento (Fonte: adaptado de RIBEIRO et al., 2013).

Em cultivos anuais, o manejo sustentável pode ser implementado pela escolha da época de plantio, seleção de material genético responsivo e adoção de práticas conservacionistas e uso racional da água e dos nutrientes, dentre outros aspectos. O manejo fitotécnico, como a redução do espaçamento utilizado no momento do plantio, é outra ferramenta importante para se obterem efeitos positivos na produtividade agrícola. Na cultura do cafeeiro, por exemplo, SAKAI et al. (2013) observaram que o aumento do número de plantas de 3.125 para 8.333 plantas por hectare elevou a produtividade em 83% em cultivo de sequeiro (Figura 3) nos três primeiros anos de cultivo: obteve-se aumento da produtividade para o mesmo regime hídrico, indicando que o manejo fitotécnico também pode colaborar para o uso eficiente da água na agricultura (SAKAI et al., 2013).

Figura 2 – Produtividade média de grãos de café Catuaí (kg ha-1) em cultivo irrigado por gotejamento superficial e de sequeiro (Fonte: adaptado de SAKAI et al, 2013).

Figura 3 – Produtividade de grãos de café Catuaí (kg ha-1) em cultivo de sequeiro em função da população de plantas por hectare (Fonte: adaptado de SAKAI et al.,2013) no terceiro ano após o plantio em Mococa, SP.

O incremento de produtividade também é possível a partir do uso e desenvolvimento de plantas com elevada tecnologia, por métodos que inserem no genoma das plantas genes de resistência à seca, e/ou através do melhoramento genético tradicional, selecionando plantas com características fisiológicas que conferem maior tolerância à seca e/ou maior EUA, como o aumento da resistência estomática (Ribeiro et al., 2013; ROSEGRANT et al., 2013). O aumento da resistência estomática (RE) consiste em mecanismo natural utilizado pelas plantas para reduzir a perda de água por transpiração foliar e evitar desidratação excessiva dos tecidos em condições de deficiência hídrica (Ribeiro et al., 2013), podendo alterar a EUA das plantas. Nessa linha de pesquisa, em estudo relacionado à cana-de-açúcar, verificou-se que a deficiência hídrica aumentou a RE nas cultivares avaliadas para evitar a perda excessiva de água na transpiração foliar, sem afetar a EUA das plantas (Figuras 4 e 5) (Ribeiro et al., 2013). Nesse estudo, a cultivar mais produtiva, a IACSP96-2042, mostrou-se bastante responsiva à água, mantendo elevada EUA mesmo com baixa RE nas condições de boa disponibilidade hídrica (Figuras 1, 4 e 5). As cultivares menos produtivas, IACSP94-2094 e SP87-365, apresentaram característica de tolerância à seca, associada ao maior controle estomático (menor variação da RE) e manutenção de elevada EUA (Figuras 4 e 5). Estudos como esse fornecem informações para o manejo varietal da cultura e para programas de melhoramento genético com enfoque em EUA.

Figura 4 – Resistência estomática (RE) de folhas de três cultivares de cana-de-açúcar (IACSP94-2094, SP87-365 e IACSP96-2042) com adequada disponibilidade hídrica ao longo do ciclo e com deficiência hídrica, por 25 dias na fase inicial de crescimento (Fonte: adaptado de RIBEIRO et al., 2013).

Figura 5 – Eficiência do uso da água (EUA) dada pela relação entre quantidade de CO2 absorvido por unidade de água (H20) transpirada nas folhas de três cultivares de cana-de-açúcar (IACSP94-2094, SP87-365 e IACSP96-2042) cultivadas sem deficiência hídrica ao longo de todo ciclo e sob deficiência hídrica, aplicada por 25 dias durante a fase inicial de crescimento (Fonte: adaptado de RIBEIRO et al., 2013).

IV) Recursos naturais, sustentabilidade e bioeconomia

Diante da necessidade do aumento da produtividade agrícola mundial dentro do contexto da bioeconomia, o uso da água deverá ocorrer de forma eficiente em todos os setores da sociedade. Na agricultura, tal fato será possível a partir da adoção de estratégias como: 1) uso de métodos de irrigação eficientes e adaptados à cultura e ao ambiente de produção associados ao manejo racional da água; 2) seleção de cultivares adaptadas ao ambiente de cultivo e com práticas culturais para potencializar o uso de recursos naturais, dentre estes a otimização da densidade de plantas; 3) manejo varietal alocando cultivares com características de resistência à seca em regiões com baixa disponibilidade hídrica e cultivares responsivas à água para áreas irrigadas; 4) uso de plantas com elevada biotecnologia, desenvolvidas a partir do melhoramento genético clássico ou pela inserção de genes de resistência à seca no genoma de plantas; 5) adoção de técnicas de manejo da água nas culturas irrigadas para evitar uso excessivo de água e quando possível implementar irrigações deficitárias em fases de crescimento específico com vistas à promoção da EUA na cultura; 6) utilização de técnicas de manejo de solo conservacionistas com enfoque em conservação da água no solo; 7) avaliação dos sistemas de irrigação para verificação da necessidade de manutenção para evitar desperdício de água e energia e aplicação desuniforme de água; 8) uso de águas residuárias (efluentes) na irrigação que, reduz a captação dos recursos hídricos e o risco de poluição ambiental no descarte desses efluentes no ambiente com práticas de monitoramento que assegurem a sustentabilidade ambiental para evitar danos ao ambiente e ao operador.

V) Referências

Agência Nacional das Águas (Brasil) – ANA. 2013. Conjuntura dos recursos hídricos no Brasil. ANA, Brasília. 432p.

FAO. Towards a water and food secure future: critical perspectives for policy-makers. Food and Agriculture Organization of the United Nations, Rome, 2015.

Ribeiro, R.V.; Machado, R.S.; Machado, E.C.; Machado, D.F.S.P.; Magalhães Filho, J.R.; Landell, M.G.A. Revealing drough-resistance and productive patterns in sugarcaneg genotypes by evaluating both physiological responses and stalk yield. Experimental Agriculture, v.49, p.212-224, 2013.

Rosegrant, M.W.; Ringler, C.; Zhu, T.; Tokgoz, S.; Bhandary, P. Water and food in the bioeconomy: challenges and opportunities for development. Agricultural Economics, v.44, p.139-150, 2013.

Sadras, V.O.; Cassman, K.G.; Grassini, P.; Hall, A.; Bastiaanssen, W.G.M.; Laborte, A.G.; Milne, A.E.; Sileshi, G.; Steduto, P. (2015). Yield gap analysis of field crops: Methods and case studies. Rome: FAO (FAO, Water Reports, 41)

Sakai, E.; Barbosa, E.A.A.; Silveira, J.M.de; Pires, R.C.de M. Coffea Arabica (cv Catuaí) production and bean size under different population arrangements and soil water availability. Engenharia Agrícola, v.33, p.145-156, 2013.

Sakai, E.; Barbosa, E.A.A.; Silveira, J.M.de; Pires, R.C.de M. Coffee productivity and root system in cultivation schemes with different population arrangements and with and without drip irrigation. Agricultural Water Management, v.148, p.16-23, 2015.

Scarlat, N.; Dallemand, J.F.; Monforti-Ferrario, F.; Nita, V. The role of biomass and bioenergy in a future bioeconomy: Policies and facts. Environmental Development, v.15, p.3-34, 2015.

UNEP, 2011. Towards a Green Economy: Pathways to Sustainable Development and Poverty Eradication, http://www.unep.org/greeneconomy).