A cana-de-açúcar no Brasil: do descobrimento à era moderna

Marcos Guimarães de Andrade Landell 1, Pery Figueiredo, Mário P. Campana, Luciana Rossini Pinto e Raffaella Rossetto

1 mlandell@iac.sp.gov.br Centro Avançado de Pesquisa Tecnológica do Agronegócio de Cana, IAC.

Por ocasião da criação do Instituto Agronômico em 1887, o Estado de São Paulo tinha o café como sua grande expressão econômica. A produção da cana-de-açúcar organizava-se através da criação de engenhos centrais. O primeiro trabalho do IAC com cana estudou o comportamento de 42 variedades cultivadas na ocasião, com e sem a utilização do esterco de curral, e fez parte do Relatório Anual da instituição de 1894. Os resultados desses experimentos permitiram selecionar variedades mais adaptadas, as quais foram multiplicadas e distribuídas para os agricultores do Estado de São Paulo.

Problemas fitossanitários na cultura da cana sempre induziram ações de mitigação e, invariavelmente, tais ações passavam pela pesquisa agrícola, que tentava identificar genótipos mais resistentes. No início do século XX, o vírus do mosaico dizimava os canaviais paulistas e isso levou à criação da Estação Experimental de Piracicaba, onde foram introduzidos os primeiros híbridos do gênero Saccharum spp oriundos dos recém-criados programas de melhoramento genético em Coimbatore (Índia) e Java. Esse material foi estudado pelo IAC e distribuído para a emergente indústria açucareira paulista

No mesmo contexto, no ano de 1933, o IAC iniciou, através do pesquisador Aguirre Jr, seu próprio programa de melhoramento de cana, detalhado, em 1936, na tese “Creação de novas variedades de Canna no estado de São Paulo”. As primeiras variedades de cana IAC foram lançadas para o cultivo comercial em 1959, algumas com grande destaque, como os cultivares IAC 4865, IAC 51-205 e IAC 52-250.
Paralelamente

Paralelamente ao programa de melhoramento IAC, havia uma pequena rede experimental que estudava o comportamento dos híbridos estrangeiros, importados da Ásia e de outras regiões do mundo. Esses estudos do IAC deram destaque, por exemplo, para a Co 290 e Co419, que se tornaram as variedades mais cultivadas em São Paulo nas três décadas seguintes.

Na década de 1950, foi conduzida uma grande rede experimental de ensaios de nutrição da cana, que determinou uma nova adubação NPK e uma tabela de calagem para a cultura. Essa contribuição foi muito relevante, pois, em alguns casos, o aumento de produtividade com a adoção da nova tabela superou vinte toneladas de colmos por hectare, contribuindo para que, no final da década, o Estado de São Paulo suplantasse em produtividade a região nordestina, até então a tradicional e maior produtora de cana-de-açúcar.

A revolução Cubana e a exclusão de Cuba do grupo de exportações preferenciais de açúcar para os Estados Unidos criaram novo clima de euforia para o setor canavieiro brasileiro. O Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) projetou grande demanda de açúcar e expandiu em mais de 50% a capacidade produtiva, estimulando a criação de novas usinas. Tudo isso foi cena de fundo para a criação do Programa Nacional do Álcool (PROÁLCOOL) na década de 1970. Em aproximadamente dez anos, a produção de cana brasileira saltou de 70 para 200 milhões de toneladas moídas.

Precedeu o lançamento do PROÁLCOOL a criação de dois grandes programas de pesquisa canavieira: a Copersucar, um programa privado de uma associação cooperativa das indústrias sucroalcooleira,
e o Planalsucar, um programa federal ligado ao Instituto do Açúcar e do Álcool. A produção tecnológica dessas organizações e os trabalhos que vinham sendo conduzidos pelo IAC, de maneira mais modesta, há décadas, lançaram as bases da canavicultura moderna do Brasil.

Em 1990, o IAA foi extinto e todo o patrimônio do Planalsucar foi incorporado pelas universidades federais geograficamente mais próximas, que posteriormente se coligaram para manter a experimentação de melhoramento genético em rede, assumindo o nome de RIDESA (Rede Interinstitucional para o Desenvolvimento do Setor Sucro-Alcooleiro). O IAC também sofreu uma reorganização de sua programação de pesquisa de cana-de-açúcar no período 1991-93, com o surgimento do Programa Cana IAC. Nos anos anteriores, apesar do baixíssimo investimento, o programa de melhoramento genético de cana-de-açúcar no IAC não sofreu descontinuidade. Essa reorganização utilizou parte da rede de estações experimentais para estabelecer um programa de seleção regional que considerava de maneira particular as condições edafoclimáticas de cada “site”. Dentre as ações realizadas neste período, citamos a criação do Grupo Fitotécnico de Cana IAC em 1992, que aproximou a pesquisa do IAC e de outras instituições do usuário, a saber: usinas, destilarias, associações e produtores independentes. A rede experimental de cana IAC ampliou-se significativamente, expandindo além das fronteiras paulistas e atendendo todas as importantes regiões canavieiras do Centro-Sul brasileiro. Em uma década e meia, ela se expandiu em mais de 300%, quadruplicando o número de ensaios em nove estados brasileiros. Um dos principais indicadores de eficácia de um projeto de melhoramento genético é a capacidade de lançamento de novos cultivares. Após a reorganização, foram lançadas as variedades indicadas no Quadro1.

Quadro 1. Variedades de cana-de-açúcar lançadas pelo Programa Cana IAC no período 1997 – 2017.

Essa mesma rede de ensaios permitiu o desenvolvimento do conceito de Matriz de Ambientes para aplicação em manejo de variedades, tecnologia aprimorada no IAC que hoje é amplamente utilizada na canavicultura brasileira.

Nessa nova fase do IAC Cana, a primeira atuação mais vigorosa ocorreu em 1993, com o aparecimento de uma nova doença que acometia a principal variedade de cana na ocasião: o amarelinho da cana. O Programa Cana IAC coordenou as ações que culminaram no diagnóstico da doença, catalisando pesquisadores de diversos centros de pesquisa do próprio IAC, do Instituto Biológico e de universidades paulistas.

Nesse mesmo período, mais exatamente a partir de 1994, o Programa Cana IAC criou projetos transversais junto ao setor privado que possibilitaram a captação de recursos de maneira sistêmica para manutenção e ampliação de grande parte da programação de pesquisa em cana da instituição. 

Em 1998, foi criado o projeto AMBICANA, que passou a usar os critérios pedológicos para estabelecer o conceito de “Ambientes de Produção em Cana”. Esse projeto, até o presente momento, atingiu área de influência de aproximadamente 1,7 milhão de hectares de cana, ou, aproximadamente, 20% de todos os canaviais brasileiros.

Também foi feita uma prospecção em genótipos em fase final de seleção para identificar características adequadas a um perfil forrageiro. Em 2002, foi lançada o cultivar IAC86-2480, com uma grande repercussão em toda a pecuária de corte e leite do Brasil.

Nesse mesmo ano, com a criação da APTA, o Programa CANA IAC, até então “virtual” e sem endereço, passou a ter sede em Ribeirão Preto, onde já centralizava suas principais ações.

Em 2005, o Programa Cana IAC ampliou seu quadro de pesquisadores, contratados para reforçar áreas de pesquisa já existentes no Centro de Cana como também para abrir novas áreas, tais como as de fitopatologia, matologia, fisiologia vegetal e biotecnologia, propiciando ao programa de melhoramento genético um aspecto multidisciplinar.

A área de biotecnologia tem atuado, principalmente, na prospecção de genes de interesse agronômico, transformação de plantas, caracterização molecular de germoplasma e mapeamento genético. Além disso, tem concentrado esforços no desenvolvimento de tecnologias aplicadas ao setor como a produção in vitro de mudas indexadas, testes de diagnóstico molecular para as principais doenças da cana-de-açúcar e identificação de variedades, entre outras. Nesse contexto, a fitopatologia tem fundamental importância para obtenção de novos cultivares de cana-de-açúcar ao fazer avaliações mais detalhadas das doenças. Assim, o Programa tem sistematizado avaliações mais refinadas na caraterização de clones e de pré-cultivares quanto ao comportamento relacionado às principais doenças, trazendo em voga os materiais tolerantes. Esse controle adequado das doenças diminui o uso de defensivos e, consequentemente, traz sustentabilidade ao setor.

Com a ampliação do quadro de pesquisadores em 2005, o Programa Cana IAC ampliou o seu envolvimento com pesquisadores de diversas instituições na execução dos seus projetos, como a ESALQ USP, Unesp Jaboticabal, UNICAMP, Instituto Biológico, EMBRAPA Agroenergia, CTBE, etc.

Além disso, várias ações de socialização do conhecimento foram realizadas após a inauguração do Centro Cana IAC. Ampliou-se o número de cursos e reuniões técnicas, assim como a participação em palestras de diversas áreas fitotécnicas da cultura, com o objetivo estratégico de aumentar a inserção das tecnologias desenvolvidas pelo Programa Cana IAC na principal área do agronegócio paulista, e uma das principais do Brasil. O Programa Cana IAC hoje é em um dos principais “atores tecnológicos” da cultura da cana-de-açúcar paulista e brasileira, sendo referência para países onde essa cultura é importante.

Além de cursos ministrados a técnicos e produtores, em 2008, foi lançado o livro “CANA-DE-AÇÚCAR”, referência da cultura no Brasil, coordenado por pesquisadores desse Centro, e que contou com a participação de mais de 70 técnicos e pesquisadores da cultura no Brasil.

Nesse mesmo ano, iniciamos o projeto PROCANA IAC no México, o que possibilitou o pré-lançamento, em 2013, de um grupo de cinco cultivares IAC para cultivo nas regiões de Veracruz e Oaxaca.

Na sequência cronológica, o Programa Cana IAC criou, através da FUNDAG, uma Estação de Hibridação de Cana-de-Açúcar em Uruçuca, Bahia, com o objetivo de atender ao projeto de melhoramento genético do Programa Cana IAC. Nesse mesmo sentido, participou da reestruturação do quarentenário de cana-de-açúcar no IAC para ampliar a coleção de germoplasma com genótipos da coleção mundial e de outras regiões do mundo. Estruturou também a biofábrica, onde são desenvolvidas diversas tecnologias, tornando-se referência para a canavicultura brasileira.

Em 2013, lançou o conceito do MPB (Mudas Pré-Brotadas), tecnologia em processo de desenvolvimento desde 2008, e, posteriormente, modernizou o Núcleo de Produção de Mudas (2016), estratégico para o melhoramento genético da cana IAC.

Nas duas últimas décadas, com a reconstrução da programação da pesquisa em cana-de-açúcar do IAC e diversas ações que se seguiram, inseriu-nos nos principais grupos de pesquisa em universidades e instituições brasileiras. Uma das principais características do Programa Cana IAC é o grande inter-relacionamento que mantém com o setor produtivo, o que legitima as ações de pesquisa. Exemplo dessa estreita relação é o Grupo Fitoténico de Cana, ambiente prospector para nossa pesquisa e que está completando 25 anos de existência. 

Uma visão contextual e a pesquisa futura com cana

A pesquisa em cana-de-açúcar do IAC acompanhou a tendência da agricultura neste novo século: aliar-se às questões ambientais de maneira que a produção de cana e o valor econômico dessa atividade não estejam desvinculados da questão ambiental e social. Ou seja, dentro das soluções pesquisadas para algum problema, procura-se sempre e prioritariamente a de menor impacto ambiental. O melhoramento genético, por exemplo, obtém variedades mais produtivas (rendimento econômico), mas a reação de resistência às principais doenças (questão ambiental) sempre foi tratada como prioritária. A área de nutrição e uso de fertilizantes se empenhou em pesquisar alternativas menos impactantes ao ambiente, como fixação biológica de N em cana, fertilizantes orgânicos e organominerais, fontes de nutrientes de lenta solubilização e uso de resíduos. Essa linha também é tendência futura e deverá ser continuada no tempo, uma vez que surgem novas fontes ou novos modos de aplicação, aliados a novos equipamentos. Também a agricultura de precisão, racionalizando o uso de insumos como corretivos e fertilizantes, é uma linha a ser estudada. Nesse ponto, há uma oportunidade para uma verdadeira revolução na canavicultura, que é a gestão espacial das touceiras. A criação do MPB tem redundado em diversos estudos para desenvolvimento de um “pacote fitotécnico” completo para esse novo modelo de canavicultura. Estudos voltados ao arranjo espacial da cultura e tudo que lhe diz respeito - nutrição mineral, irrigação, uso de resíduos, espaçamentos, controle de plantas daninhas, etc - têm sido realizados, criando uma nova perspectiva para a cultura da cana-de-açúcar no que diz respeito à “produtividade meta”. Alguns modelos estimam que a produtividade poderá atingir patamares 50% superiores ao atual, o que poderá ser ampliado com a seleção conjunta dos programas de melhoramento genético para uma canavicultura com arranjo espacial.

Na questão do uso de resíduos, os últimos anos foram destinados às pesquisas que mediram os impactos ambientais do uso dos resíduos combinados com fertilizantes. Estudaram-se também questões relativas ao tempo de decomposição da palha e a manutenção da totalidade ou da retirada da palha do solo. Essa questão do uso de resíduos versus questões ambientais versus retirada para produção de energia (elétrica ou etanol 2G) deverá perdurar como tendência futura.

A cana energia deverá ganhar importância nas pesquisas atuais e relevância na produção futura no momento em que se determinarem as tecnologias mais eficazes para sua transformação em etanol 2G ou complemento da safra de 1G, ou mesmo na cogeração de energia.

Dessa forma, a pesquisa visando ao desenvolvimento de fitotecnologias para a cultura da cana-de-açúcar nas próximas décadas deverá sempre contemplar a sustentabilidade do sistema como um todo, qualquer que seja a área do conhecimento acessada.

Destaca-se também que o olhar do Programa Cana IAC para o produtor de cana, aquele que não tem a indústria e depende exclusivamente da sua eficiência na lavoura, tem sido diferente nestas duas décadas, com a ampliação recente das ações para integrar e treinar o produtor para uma canavicultura de alta performance. O Projeto “+ Cana”, realizado em parceria com a COPLANA e SOCICANA de Guariba, SP, é um exemplo disso, pois tem como um dos principais objetivos instrumentalizar o produtor para que ele “navegue” na canavicultura dos três dígitos, o que assegurará sua sustentabilidade. Assim, técnicas que favoreçam o cultivo da cana pelo próprio agricultor, tornando-o dono de sua produção, já estão sendo implementadas, com o Programa Cana IAC sendo um dos principais agentes dessa ação.

Neste momento, precisamos ampliar a estrutura desse programa para que ele seja realmente do tamanho da canavicultura, que, em São Paulo, é, destacadamente, a principal atividade do agronegócio. Na nossa visão, isso é fundamental, pois legitima a própria pesquisa agropecuária paulista, que, pelas mãos do Programa Cana IAC, tem servido esse importante setor. Assim sendo, há necessidade de um investimento expressivo nesse setor da pesquisa para ampliação das ações que atendam as principais áreas da fitotecnia da cultura, e, principalmente, das várias possibilidades de produtos que virão de um novo fenótipo com capacidade de produzir muito mais energia, segmentando as oportunidades para a agroindústria, que hoje transforma quase que somente a cana-de-açúcar convencional.

O Instituto Agronômico deve se inserir como um dos principais protagonistas dessa transformação, usando todo o esforço do seu melhoramento genético em busca de novas linhas ascendentes que permitam esse salto em produção de energia primária. Isso, com certeza, possibilitará a sustentabilidade aos canavicultores paulistas e brasileiros durante o século XXI.

Enfim, o agronegócio da cana movimenta, na atualidade, o valor agrícola da produção, somente no Estado de São Paulo, próximo de 30 bilhões de reais/ano, e, indiretamente, estima-se mais de 150 bilhões de reais/ano, portanto é urgente que se decida pelo investimento na pesquisa desse setor de maneira sustentável, sem o risco de “hiatos” que fragilizem a programação de pesquisa de cana do IAC, como ocorreu em décadas passadas deste mais de um século de atuação do IAC nessa cultura.