Moléculas inéditas em antigas coleções de plantas e tecnologias inovadoras

Por Nilson Borlina Maia¹ e Eliane Gomes Fabri

1 – nilson@iac.sp.gov.br – Centro de Pesquisa Tecnológica do Agronegócio de Horticultura, IAC.

O uso de plantas pela humanidade confunde-se com sua história. Os ancestrais já utilizavam plantas como alimento e alguns outros poucos itens, como alavancas e clavas, desde antes do surgimento da raça humana. Diferente da caça, no reino vegetal sempre foi possível buscar os recursos dispostos e estáticos.

A evolução da civilização trouxe inúmeras necessidades que, em grande parte, foram atendidas pelo reino vegetal. A invenção da agricultura permitiu o fim do regime nômade e de longos períodos em busca de alimento, possibilitando maior dedicação a outras atividades, como a arte e a ciência. Se olharmos numa perspectiva que abranja toda a pré-história e história, a agricultura é recente. Há certa convergência de opiniões entre especialistas de que o evento da agricultura surge entre 10 e 14 mil, e os humanos surgem, dependendo de diferentes critérios, entre 200 mil a mais de um milhão de anos.

Esse evento relativamente recente se deu com a prática sistemática do plantio de sementes guardadas de uma safra anterior. O ato da escolha dos melhores grãos para semeadura nas safras vindouras foi uma das primeiras e mais importante técnica agrícola. O plantio dos melhores grãos em safras sucessivas alterou gradativamente tanto a capacidade produtiva das primeiras lavouras como a própria anatomia das plantas cultivadas.

Hoje dificilmente um leigo reconheceria numa pequena planta, parecida com capim, com uma espigueta de poucos centímetros, poucos e pequenos grãos expostos, o milho originalmente plantado nas primeiras lavouras. Porém, a seleção dos grãos para semente para a próxima safra, visando aos interesses dos primeiros agricultores, incorporou ao milho moderno características inexistentes nas plantas ancestrais, como espigas longas com muitas fileiras com muitos e maiores grãos, cobertas de palha, que facilita a colheita, dá proteção contra pragas e intempéries. A própria planta ficou com talo mais alto, forte o suficiente para suportar uma maior área foliar para conversão de energia solar em grãos, e reter as pesadas espigas à espera da coleta. Muitas outras plantas, como trigo, batata, mandioca, abóbora, também passaram pelo mesmo processo em vários lugares no mundo onde alguma civilização se instalou e evoluiu sua cultura e suas lavouras, também chamadas de cultura.

Apesar de a agricultura ser uma atividade milenar, só muito recentemente, com o desenvolvimento científico moderno, é que os mecanismos envolvidos nessa evolução vegetal começaram a ser compreendidos. A partir de estudos estatísticos com ervilhas, o monge e matemático Gregor Mendel, em 1865, determinou as leis que regem a transferência ou a herança de características vegetais.

Até então, a taxa de aumento da produtividade das lavouras, apesar de crescente, passou a ser inferior à da população humana, conforme já havia alertado o economista britânico Thomas Malthus, que desde o início do século XIX esperava uma fome generalizada.

Após alguns anos de ostracismo dos estudos de Mendel e mesmo sem se saber de que forma as características vegetais eram herdadas pelas gerações, diferentes conhecimentos científicos, técnicas e ferramentas passam a ser desenvolvidos e utilizados para se obterem plantas mais eficientes para a agricultura. Somente no meio do século XX, compreende-se que as características são herdadas através de genes formados por DNA, decifrado em 1950, contidos nos núcleos das células. Hoje essas combinações de genes são sistematicamente estudadas por uma especialidade científica chamada Melhoramento Genético Vegetal.

Para viabilizar o melhoramento genético de espécies mais produtivas e resistentes a pragas e doenças, cientistas e institutos de pesquisa, como o Instituto Agronômico, ao redor do mundo passaram a colecionar o maior número possível de variedades das espécies de interesse, de modo a permitir a maior combinação de características interessantes para aumento da produção. Milhares de variedades existentes na natureza e novas variedades passam a ser cultivadas para serem utilizadas em cruzamentos que irão gerar plantas mais produtivas. Essas coleções, à semelhança de bibliotecas ou bancos, não armazenam livros ou moedas, mas informações genéticas contidas nos genes de cada variedade de planta, por isso são chamadas de bancos de germoplasma.

 

 

O emprego dessas técnicas genéticas, associado ao desenvolvimento de outras áreas, como mecanização, fertilidade de solo, fitopatologia, entomologia, permitiu um imenso salto na produtividade agrícola mundial, frustrando as previsões de Malthus.

Esse aumento de produtividade agrícola, num curto período da história, foi tão intenso que passou a ser referenciado como Revolução Verde, que permitiu sustentar a população, que além de crescer estava deixando o campo e migrando para os centros urbanos, onde anteriormente já havia se iniciado outra revolução, sua coirmã: a industrial.

A grande e nova indústria e a massa populacional urbanizada passam a demandar um número crescente de produtos até então inexistentes, estimulando o surgimento de novas classes de indústrias especializadas para atender a esse mercado. Ao lado das pioneiras indústrias têxtil e mecânica, exemplos do primórdio da revolução industrial, surgem cada vez mais indústrias de química, alimentos, fármacos, cosméticos etc.

A intensa competição comercial dessas novas indústrias exige que novos produtos sejam lançados em velocidade crescente. Esses novos produtos exigem novas matérias-primas que, muitas vezes, são buscadas na flora nativa. Novos perfumes, remédios e aditivos de toda ordem passam então a ser lançados graças aos novos aromas, fármacos ou enzimas descobertos em plantas de florestas até então nunca cultivadas.

Entretanto, as técnicas agrícolas até então satisfatórias para aumentar a produção de alimentos, fibras e gorduras não conseguem atender a nova e crescente demanda por matérias-primas e moléculas especiais inusitadas das plantas das florestas. A demanda passa a pressionar a exploração predatória, colocando em risco as espécies que vegetam nas florestas e campos naturais.

Tanto o processo de domesticação de uma espécie que só tenha vegetado em ambientes naturais como sua adaptação às condições de lavoura demoram muitos anos e esforço de várias áreas de pesquisa. Épocas de plantio e colheita adequados, determinação de regime hídrico, condições de fertilidade e física de solo, espaçamento adequado, variabilidade genética e qualidade do produto final, manejo de pragas e doenças são alguns dos fatores difíceis e demorados para serem definidos, mas necessários.

A demora no desenvolvimento tecnológico e a imediata necessidade de mercado são responsáveis pelas explorações predatórias: atividade que causa a eliminação de populações naturais e a extinção de espécies. Além do prejuízo ambiental, a exploração de espécies nativas sem os necessários estudos acaba inviabilizando comercialmente o produto industrial que gerou a demanda. A simples exploração de produtos naturais nas florestas como matéria-prima não é recomendável para a própria segurança econômica do produto final.

No entanto, os caminhos de síntese bioquímica dessas moléculas concentradas nas espécies nativas muitas vezes não são exclusivos e também ocorrem em outras espécies já cultivadas para alimentos, fibras ou gorduras, porém em menor quantidade.

Alguns trabalhos recentemente desenvolvidos no IAC em parceria com universidades e empresas mostram a viabilidade técnica e econômica do uso de plantas tradicionalmente cultivadas para se obterem moléculas especiais até então obtidas na flora nativa, que chegaram a colocar espécies florestais em risco de extinção.

O linalol, um álcool sesquiterpênico usado na perfumaria a partir do início do século XX, foi extraído das árvores centenárias do Pau-rosa, que cresce na floresta amazônica. A demanda por suas características olfativas foi tão intensa que fez com que o corte de árvores e a destilação dos seus troncos levasse a espécie quase à extinção, mesmo com todas as dificuldades em se encontrar, cortar, transportar e processar a madeira no meio de uma floresta como a Amazônica.

A parceria do IAC com a Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) incentivou a criação da agroindústria LINAX, a fim de desenvolver a tecnologia necessária para a produção da mesma molécula a partir do cultivo racional de manjericão. Apesar de a molécula ocorrer em no máximo 40% no óleo essencial das folhas do arbusto de manjericão, enquanto que no óleo do tronco da árvore ocorre em 85%, suas vantagens agronômicas, como facilidade de plantio, colheita e ciclo curto, compensam mais que a exploração predatória da espécie florestal.
Apesar de todo o esforço para o desenvolvimento de técnicas de colheita, determinação de variedade adequada, análises químicas e condições de destilação que foram necessárias para se obter o mesmo linalol do pau-rosa com folhas de manjericão, a pesquisa só foi possível graças à existência de um banco de plantas com diferentes variedades de manjericão, mantidas há várias décadas pelo IAC.

Os bancos de germoplasmas naturalmente são utilizados e estudados para se obterem plantas mais produtivas do que seu produto original. Os bancos de café foram mantidos para se obterem plantas que produzam mais grãos de café; os de soja para produzirem mais proteína ou óleo; o de laranja mais frutos e suco etc. Dificilmente são estudados quanto ao seu potencial de produção de outras moléculas que não são de interesse à cadeia produtiva da própria cultura, mas podem ter grande interesse econômico, como aromas, fármacos, reações enzimáticas etc.

Apesar de terem sido muito estudadas quanto ao seu potencial de produção de produtos primários, como proteínas, açúcares e frutos, e terem armazenado em seus tecidos um enorme número de metabólitos secundários, essas coleções tiveram seu potencial de metabólitos secundários relativamente desprezado.

 

 

Os números envolvidos na contagem de variedades em bancos de germoplasmas normalmente ultrapassam a escala do milhar de acessos, termo para designar as diferentes plantas por sua origem. No IAC, para ficar somente em dois exemplos, existem mais de 4.000 acessos de café e mais de 2.700 de citros.
Foi patenteado o uso da molécula Caveol como ativo ou coadjuvante em formulações dermatológicas e outros componentes sensíveis para fins de proteção a raio ultravioleta. A molécula com potencial uso de proteção solar ocorre na fração não saponificável do óleo de café, em diferentes concentrações nas duas dezenas estudadas que permitiram o estudo que originou o pedido de patente. Existe um potencial a ser explorado ainda nos 4.000 acessos não estudados neste trabalho. Esta rápida prospecção de metabólitos secundários na coleção de café foi realizada pelo Centro de Horticultura na antiga Seção de Plantas Aromáticas e Medicinais, em conjunto com o Centro de Café e o Centro de Recursos Genéticos através do setor da Fitoquímica do IAC.
Estudos clínicos em animais (fase 1) resultaram num pedido de patente internacional para o uso do óleo de café como cicatrizante de úlceras dérmicas graças à parceria do IAC com o Departamento de Dermatologia de Clínica Médica da Unicamp e Linax, que desenvolveu um projeto para inovação em pequenas empresas (PIPE-FAPESP).

Com o desenvolvimento da extração de óleo de café, foi possível a realização de trabalhos em parceria do IAC, LINAX e a equipe de fitopatologia da EMBRAPA – Meio Ambiente, que resultou numa dissertação de mestrado e evidenciou a possibilidade do uso do óleo de café no controle da ferrugem asiática da soja.

Os citros foram estudados em conjunto pela empresa alemã Miritz, especializada na comercialização de óleo de laranja, e o IAC através dos Centros de Horticultura e de Citricultura “Sylvio Moreira”, que possui um dos maiores bancos de germoplasma do mundo: duzentas extrações de óleo dos frutos de seus mais de 2.700 acessos existentes naquele banco na época do trabalho. O trabalho foi publicado no livro “Essential Oils in Citrus Plants”. Normalmente o óleo de laranja é utilizado para obtenção exclusivamente da molécula d-limoneno. Porém, o trabalho, o mais extenso publicado sobre o assunto até o momento, mostrou a existência de até 179 moléculas diferentes nesses óleos, com possibilidade de exploração em diferentes setores, como fármacos, aromas, defensivos agrícolas etc.

Como pode se observar, o potencial dos bancos de germoplasmas é imenso. Além da grande importância que têm e continuarão a ter por garantirem o material vegetal básico necessário para o melhoramento vegetal tradicional, guardam, nos tecidos de suas folhas, raízes e frutos, moléculas que buscamos atualmente e, certamente, moléculas que ainda não se conhece a utilidade, mas que no futuro poderá combater pragas nas lavouras, doenças em animais e em humanos ou outros fins que a indústria demandar.

Nesse contexto, o Banco de Germoplasma de Urucum do Centro de Horticultura do IAC, até um passado recente, apenas era estudado para selecionar plantas com maior potencial de produção de grãos e corantes. Atualmente, novas pesquisas vêm sendo desenvolvidas pelo Centro de Horticultura do IAC e o Centro de Ciência e Qualidade de Alimentos do ITAL.

Novos produtos e princípios ativos estão sendo estudados, como: lipídeos, geranilgeraniol e tocotrienóis. Essas substâncias são utilizadas em alguns segmentos da indústria farmacêutica, na fabricação de remédios que visam ao controle de colesterol, tratamento de alguns tipos de câncer, entre outros. Encontrar fontes mais baratas e viáveis desses princípios ativos contribui para um futuro próximo na possível redução de custos desses medicamentos, além de agregar novos valores na cadeia produtiva do urucum.
A grande vantagem do uso de novos produtos ou de moléculas descobertas nos bancos de germoplasma tradicionais é que são constituídos por plantas de cultivo tradicional e, diferentemente das plantas da flora nativa, toda a tecnologia necessária para sua produção já é conhecida e não oferece risco de comprometimento ambiental.

Um novo olhar sobre os antigos bancos de germoplasma, de qualquer espécie, na busca de novos produtos ou moléculas, pode resultar em grandes descobertas, trazendo excelente benefício econômico, social e humano.