Do Básico ao Aplicado: A Pesquisa na Citricultura

Marcos A. Machado 1, Alessandra Alves de Souza e Mariângela Cristofani-Yaly

1 marcos@citricultura.br Centro Avançado de Pesquisa Tecnológica do Agronegócio de Citros “Sylvio Moreira”, IAC.

De como a pesquisa básica de qualidade pode gerar inovação

Por suas particularidades botânicas e genéticas, os citros podem ser considerados plantas sobre as quais muito ainda há para ser descoberto e caracterizado. Por sua vez, como cultura domesticada e utilizada em grandes extensões, a citricultura é uma das mais importantes do agronegócio da fruticultura brasileira e mundial. Por seu caráter perene e lenhoso, são plantas que tendem a conviver por longos períodos de tempo, sempre expostas a toda sorte de estresses bióticos e abióticos. Sua longevidade explica um pouco a baixa taxa de incorporação tecnológica que o processo de produção de citros apresenta ao longo do tempo.

Em comparação com espécies de cultivo anual, a cultura dos citros tem menor volume de informações, muito embora tenham sido suficientes para torná-la até a atualidade uma das mais importantes do mundo. Do ponto de vista biológico, os citros podem ser considerados espécies fascinantes. Produzem frutos do tipo hesperídio (um fruto tipo baga modificada, com pericarpo comestível preenchido por glândulas de suco e de óleo essencial); apresentam juvenilidade fisiológica (morfologia de plantas jovens distinta de plantas adultas; florescem somente como plantas adultas; frutos jovens são atípicos daqueles de plantas adultas; apresentam espinhos vigorosos, crescimento vertical). De modo geral, não são típicas espécies botânicas, são híbridos naturais; podem apresentar sementes apomíticas com embriões originados de tecido somático da planta mãe; podem ser propagados por técnicas de enxertia entre espécies distintas, mantendo as características adultas, ou com sementes apomíticas; e seriam árvores perenes não fora o elevado nível de estresses a que estão sujeitos constantemente no ambiente.

Portanto, em vários sentidos, os citros podem ser considerados desafios científicos e tecnológicos e nisso reside grande parte do fascínio que essas plantas exercem em pesquisadores, especialistas e agricultores que trabalham com esse grupo de plantas. É perfeitamente compreensível que para melhor conhecer os citros deve-se mergulhar em seus segredos. No entanto, não pode ser negligenciado que além de serem objeto científico, os citros são também objeto agronômico e, nesse sentido, também representam desafios que necessitam ser abordados para soluções temporárias ou definitivas. Desse modo, este texto procura demonstrar que, apesar de todos os desafios, a pesquisa com citros pode ser feita com qualidade e gera resultados que podem ser aplicados à citricultura. Para tanto, resumos de alguns projetos apoiados por agências de fomento, como Fapesp e CNPq, são apresentados.

Plantas Matrizes, Borbulheiras e Viveiros

Como plantas de propagação vegetativa por excelência e plantas perenes, os citros estão sujeitos constantemente à contaminação por agentes patogênicos, como viroides, vírus, bactérias e fungos. Vários desses agentes têm vetores que os transmitem de planta a planta, que, quando infectada, os mantém de modo sistêmico. A utilização de propágulos vegetativos de tais plantas seguramente levará consigo o patógeno para a nova planta resultante. Nesse processo de clonagem, de grande valor agronômico, mudas infectadas resultarão em pomares doentes e, em consequência, pouco produtivos. Portanto, é essencial que a qualidade fitossanitária e genética das plantas matrizes ou plantas básicas - aquelas plantas que fornecerão borbulhas para a produção de novas plantas - seja garantida. Isso é tão mais importante quando se sabe que alguns patógenos virais podem ser crípticos, isto é, manifestam-se somente em determinadas condições na planta adulta. Portanto, é crucial saber como eliminar patógenos em cultivares elites. Uma das possibilidades é propagar a planta elite por semente, entretanto aqui ocorrem dois fatores limitantes: a planta resultante é juvenil, portanto poderá levar mais de dez anos para iniciar a produção comercial de frutos, além de ela poder ser algum híbrido resultado de cruzamento não controlado em condições de campo. Em assim sendo, tal planta não reproduzirá as características da planta elite que lhe deu origem. 

A maneira de se manterem os clones de uma planta elite com suas características genéticas e fisiológicas, isto é, evitar que se tornem juvenis, é propagá-los por microenxertia. Tal técnica utiliza meristemas somáticos (não florais) de plantas adultas (Fig.1), que são microenxertados em porta-enxertos in vitro e posteriormente aclimados em casa de vegetação. A eliminação de patógenos sistêmicos parece ocorrer pela reduzida conexão vascular entre o meristema e os feixes de vasos do floema (onde normalmente alguns patógenos se encontram). Tão importante quanto executar com eficiência a microenxertia é comprovar se a planta elite original estava ou não contaminada e, principalmente, se o processo de microenxertia conseguiu ou não eliminar os patógenos. Tal procedimento é denominado indexação e pode ser feito com testes biológicos com plantas indicadoras, bioquímicos, sorológicos e moleculares.

Figura 1. Meristema de plantas adultas utilizado no processo de microenxertia para eliminação de patógenos sistêmicos em citros.

Figura 2. Conjunto de plantas básicas e plantas matrizes que fornecem borbulhas para o sistema de produção de mudas do Estado de São Paulo

A reunião de várias dessas tecnologias, bem como a necessidade de renovação do quadro de plantas básicas e plantas matrizes de cultivares copa, resultou em um amplo painel de cultivares com alta qualidade genética e fitossanitária (Fig. 2), que serve de base para toda a citricultura paulista. Embora possa parecer contrassenso, tais plantas, livres de todo tipo de patógeno, precisaram ser novamente infectadas com raças fracas e protetivas do vírus da tristeza dos citros, de modo a garantir que, quando no campo, raças severas desse vírus não as infectem novamente. Tal procedimento, denominado pré-imunização, funciona como uma vacina e foi desenvolvido pelo IAC na década de 1960.

Portanto, a aplicação de técnicas básicas de biologia molecular, de cultura de tecidos e de virologia propiciou a recuperação dos principais cultivares de citros no Estado de São Paulo, garantindo a sanidade do material de propagação e, com isso, mudas com maior resistência aos estresses iniciais pós-plantio. Sem dúvida, esse é o passo mais importante para iniciar um pomar produtivo e sustentável.

Clorose Variegada dos Citros (CVC)

A clorose variegada dos citros foi detectada no final da década de 1980 no norte do Estado de São Paulo e se tornou mais uma severa ameaça à citricultura. Causada pela bactéria Xylella fastidiosa, ela teve rápida expansão, provavelmente associada à prática de borbulheiras (unidades de multiplicação de borbulhas em larga escala) a céu aberto, nas quais os insetos vetores da bactéria poderiam se alimentar livremente. Ao longo dos anos 1990, seu agente causal bem como seus vetores foram confirmados, ficando claro que o sistema de produção de mudas em viveiros não protegidos contra os vetores era um dos principais responsáveis pela alta taxa de infecção em plantas jovens. Portanto, a ideia de produzir mudas em ambiente protegido, muito associada ao conceito de muda certificada, passou a ser urgentemente implementada no sistema de produção de mudas no Estado de São Paulo, como sempre pioneiro em inovação tecnológica na citricultura. Antecipando-se a isso, o Centro de Citricultura já tinha estabelecido um protótipo de viveiro e de borbulheira em ambiente protegido que serviu de modelos a outros viveiristas.

Apesar dessas medidas, a CVC ainda não havia sido vencida totalmente. Expandia-se fortemente principalmente em áreas com alta incidência de estresse hídrico, como o norte do Estado de São Paulo. Confirmada a participação da bactéria X. fastidiosa como agente causal, tornou-se necessário entender melhor como era causada a doença. Uma ação decisiva nesse sentido foi o sequenciamento do seu genoma, que foi o primeiro de uma bactéria fitopatogênica a ser feito no mundo (Fig. 3). 

Figura 3. Capa da revista Nature com o anúncio do sequenciamento do genoma da bactéria Xylella fastidiosa, agente da clorose variegada dos citros.

Das informações do genoma, ficou claro que um de seus mecanismos de patogenicidade estava associado à capacidade de constituir colônias que bloqueiam os vasos do xilema, impedindo a movimentação de água e solutos que vêm da raiz. Essas colônias crescem em um padrão denominado biofilme, no qual as bactérias vivem em uma matriz de exopolissacarídeos, que lhes confere proteção e capacidade de adaptação. Portanto, estratégias para impedir ou reduzir a formação do biofilme, assim como para desagregá-lo, poderiam contribuir para a redução do progresso da doença. Isso passou a ser possível com o uso de um composto utilizado no tratamento de infecções bacterianas no trato respiratório superior em humanos. Tal composto, denominado N-acetil cisteína (NAC), é um análogo do aminoácido cisteína e, quando aplicado em formulação adequada, reduz drasticamente o progresso da doença, embora não leve à cura (Fig. 4).

Figura 4. Planta de laranja doce com CVC tratada e não tratada com NAC.

Figura 7. Híbridos de porta-enxertos com tolerância à seca. O cultivar copa é a laranja Pera.

O NAC tem potencial para ser utilizado com outras bactérias, seja em citros seja em outras culturas. Trabalhos sobre sua atuação nas bactérias do cancro cítrico e do huanglongbing estão avançados. Para expansão dos resultados e eventual comercialização, a Fapesp aprovou um projeto PIPE para a empresa CiaCamp em parceria com o Centro de Citricultura do IAC.

Biotecnologia e Melhoramento

A partir dos anos 1980, o conceito de biotecnologia incorporou-se definitivamente aos trabalhos de pesquisa e desenvolvimento. Especialmente no setor agrícola, a biotecnologia passou a ser vista, até com muito exagero, como solução para todos os problemas, com promessas que se mostraram difíceis de serem cumpridas. No entanto, ficou claro que ela poderia contribuir com os avanços na pesquisa, principalmente ao propor soluções multidisciplinares para questões que até então eram abordadas de modo isolado e fracionado. Seu conjunto de técnicas e procedimentos aplicava-se especialmente a culturas em que eram maiores as dificuldades para avançar programas de melhoramento, como os citros.

Ao se implementar o Programa de Melhoramento de Citros no Centro de Citricultura no início dos anos 1990, o objetivo principal era gerar variabilidade para os estudos de herança e, a partir daí, produzir novos cultivares de copa e porta-enxerto. No entanto, até então, os desafios para conduzir tal programa eram enormes, uma vez que a genética e a biologia reprodutiva do grupo impunham limites que somente puderam ser superados com a biotecnologia. Um dos principais desafios é estabelecer um sistema de seleção de embriões sexuais no conjunto de embriões nucelares, portanto, assexuais, na semente, que normalmente é apomítica e poliembriônica. Para essa seleção foram utilizados marcadores moleculares do tipo RAPD (random amplified polymorphism DNA) e SSR (single sequence repeats) ou microssatélites, que tiveram que ser desenvolvidos especialmente para citros.

As sementes obtidas por cruzamento controlado eram germinadas em casa de vegetação e dos embriões germinados procedia-se a extração de DNA e genotipagem com os marcadores. Em alguns cruzamentos envolvendo Poncirus trifoliata, a seleção era feita com marcadores morfológico dominante, como folhas trilobatas. Os cruzamentos foram direcionados com progenitores com resistência ou tolerância a algum fator biótico (doenças) e abiótico (tolerância à seca). Desse modo, foram obtidos híbridos potenciais para cultivares copa entre laranja (suscetível a CVC, leprose, tolerante à tristeza, resistente à mancha de alternaria e com qualidade de fruta para a indústria e o mercado de fruta fresca) com tangor Murcott ou tangerina Ponkan (resistentes à CVC e à leprose, suscetível à mancha de alternaria, maior tolerância ao cancro cítrico, tolerante à tristeza, qualidade de fruta para o mercado de fruta fresca). Outro grupo de híbridos foi planejado para porta-enxertos e envolveu cruzamentos entre Poncirus trifoliata e tangerina Sunki. Esses híbridos, conhecidos como citrandarins, podem apresentar a resistência à gomose, à tristeza, à morte súbita de P. trifoliata, com as características agronômicas da tangerina Sunki. Outros híbridos de laranja com tangerina Cravo, limão Cravo com P. trifoliata e tangerina Ponkan com outras tangerinas foram obtidos e estão em avaliação. O Programa de Melhoramento de Citros assistido com marcadores moleculares pode ser considerado o maior programa dessa natureza e só ser conduzido com a utilização de marcadores moleculares e técnicas de reversão de juvenilidade que propiciaram aceleração de florescimento e obtenção de frutos para avaliação agronômica. Vários desses novos híbridos encontram-se em sistema de produção. Um deles é o primeiro cultivar do Instituto Agronômico protegido no Serviço Nacional de Proteção de Cultivares (SNPC) do MAPA, denominado IAC2019Maria. 

Figura 8. Capa da revista Nature Biotechnology com a publicação do genoma de citros feito pelo Consórcio Internacional do Genoma de Citros, no qual o Centro de Citricultura participou.

Com a evolução das tecnologias de sequenciamento de genomas e com a participação do Consórcio Internacional do Genoma de Citros, foi possível concluir o sequenciamento completo de uma tangerina Clementina, que passou a ser a espécie de referência para as demais. O grupo do Centro de Citricultura sequenciou também outros genomas importantes, como o limão Cravo, a tangerina Ponkan e Poncirus trifoliata. Tais informações são extremamente relevantes para a continuidade do Programa de Melhoramento, uma vez que será possível caracterizar genes em respostas a estresses bióticos e abióticos, bem como mapeá-los com suficiente detalhamento que permita sua clonagem e transferência para outros genótipos. Novas tecnologias de geração de variabilidade, como a edição de genoma por Crispr e o silenciamento gênico por RNAi, dependem do adequado conhecimento do genoma da espécie.

Em conclusão, é conhecido que o avanço do conhecimento representado principalmente por seus aspectos de pesquisa fundamental é o caminho mais seguro para o avanço tecnológico. No entanto, somente pesquisa de qualidade e comprometida com o produto ou com seus usuários tem o potencial de efetivamente promover inovação tecnológica.

Referências

Simpson, AJG et al. 2000. The genome sequence of plant pathogen Xylella fastidiosa. Nature 406: 151 – 159.

Souza, AA; Takita, MA; Coletta Filho, HD; Caldana, C; Goldman, GH; Yanai, GM; Muto, NH;

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Machado, MA; Cristofani-Yaly, Mariângela; Bastianel, Marinês, 2011. Breeding, genetic and genomic of citrus for disease resistance. Revista Brasileira de Fruticultura 33:158 – 172. G Albert Wu et al., 2014. Sequencing of diverse mandarin, pummelo and orange genomes reveals complex history of admixture during citrus domestication. Nature Biotechnology 32: 656-662.

Muranaka LS, TE Giorgiano, MA Takita, MR Forim, LFC Silva, HD Coletta-Filho, MA Machado, AA Souza. 2014. N-Acetylcysteine in Agriculture, a Novel Use for an Old Molecule: Focus on Controlling the Plant–Pathogen Xylella fastidiosa. PLOSone. http://dx.doi. org/10.1371/journal.pone.0072937.